Caçador de Marajás: o personagem que o Brasil quis acreditar e a repetição do erro com Bolsonaro

Assistindo o documentário Caçador de Marajás percebemos que ele não é apenas sobre Fernando Collor de Mello. É sobre o Brasil sobre a necessidade quase cultural de criar heróis improváveis, fabricar salvadores e acreditar em personagens que jamais existiram de verdade.

 

Após décadas de ditadura e censura, o país saiu da redemocratização com uma fome emocional de esperança, de alguém que encarnasse o futuro, o moderno, o incorruptível. E foi exatamente nesse vazio que Collor se encaixou: não porque fosse esse líder, mas porque o Brasil quis acreditar que ele fosse.

 

Collor sempre esteve longe de ser um homem do povo. O documentário expõe sem delicadeza um traço que hoje salta aos olhos: Collor não gostava de gente. Não se conectava. Não tinha empatia.

 

Ele era uma construção: aparência atlética, frases ensaiadas, gestos treinados um personagem elegante para ser consumido, não um líder preparado para governar.

 

E o país, ainda inseguro de sua própria democracia recém-nascida, aceitou esse personagem como se aceita um messias: com fé, não com razão.

 

Há um traço histórico na política brasileira que o documentário ajuda a revelar: o desejo profundo do brasileiro por alguém que resolva tudo sozinho, que limpe, que puna, que coloque ordem, que inaugure um novo país em quatro anos.

 

Esse imaginário nasce da boa intenção, mas também da nossa dificuldade coletiva de lidar com processos lentos, enfrentar estruturas complexas, participar da política como cidadãos ativos e não como torcedores.

Assim, nasce a fantasia do “salvador”. E quando essa fantasia encontra um personagem pronto ainda que vazio, a história se repete.

Foi assim com Collor.

Foi assim, décadas depois, com Bolsonaro.

 

Bolsonaro: a reciclagem moderna do salvador imaginário

 

A ascensão de Jair Bolsonaro seguiu a mesma matriz emocional: o país, tomado por frustrações, crises e ressentimentos, buscava um “herói” que encarnasse a limpeza moral. E ele apareceu vestindo verde e amarelo, erguendo a bandeira como se fosse sua, prometendo exterminar a corrupção, proteger a pátria e enfrentar “inimigos”.

 

Era, mais uma vez, um personagem. Um personagem fabricado não pela comunicação, mas pela própria necessidade de grande parte dos brasileiros de projetar força, autoridade e redenção em alguém que nunca foi capaz de entregar nada disso ao longo de sua vida pública.

 

Hoje, Bolsonaro está preso. E a imagem do “herói nacional” desmoronou exatamente como a de Collor desmoronou nos anos 90. Não foi o marketing que os destruiu. Foi a realidade.

 

O que Caçador de Marajás escancara é que Collor sempre foi um personagem raso, distante, teatral, criado para caber na fantasia brasileira do “príncipe moderno” que viria salvar o país dos marajás.

 

Os sinais estavam todos lá: dificuldade de lidar com pessoas, autoritarismo envernizado, frieza nas relações, desprezo pela crítica, arrogância evidente.

A população preferiu não ver.

Preferiu acreditar.

E pagou o preço com o primeiro impeachment da história.

 

O Brasil repetiu o erro com Bolsonaro: desprezo pela democracia, anti-intelectualismo, contradições morais, ausência de entrega real, uso político de símbolos nacionais, incapacidade de lidar com a complexidade do país.

 

Mais uma vez, o brasileiro acreditou no personagem e mais uma vez a queda foi inevitável.

 

O problema não é a comunicação. É a necessidade de acreditar em mitos.

 

Este é o ponto central: o marketing só amplifica o que já existe. Quem cria o mito é o povo. Quem sustenta a ilusão é a história que contamos a nós mesmos.

 

O brasileiro, marcado por golpes, ditaduras e desigualdades, aprendeu a esperar um salvador, não a construir soluções coletivas.

 

E enquanto essa cultura persistir, continuaremos vulneráveis a Collors e Bolsonaros: figuras performáticas, agressivas, sedutoras, mas vazias. A diferença entre eles é só o figurino. A lógica é a mesma.

 

O documentário sobre Collor é um espelho incômodo. Ele não fala apenas de um presidente que caiu. Fala de uma sociedade que insiste em acreditar em figuras irreais, em personagens que performam virtudes que não possuem.

 

Enquanto continuarmos confundindo representação com realidade, pose com projeto, coragem teatral com coragem política, continuaremos entregando o país a líderes que não gostam do povo, não gostam do diálogo, não gostam da democracia.

 

A história já avisou mais de uma vez. Resta saber se teremos coragem finalmente de escutar.

 

Por Joyce Moura – jornalista

 

 

 

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