O ALIENÍGENA (PARTE XXIX)
- Clauder Arcanjo*
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O Casal Arnolfini, de Jan van Eyck.
— Não, não!… Lá vem o tal morcego para o meu lado. Socorro!
Em desespero, lembrou?, fechei a novela e prometi nunca mais me meter com literatura gótica.
Mas, caro leitor, há decisões de pouca valia no mundo das letras. Se não sabia, registre mais essa no seu bornal de certezas.
Pois muito bem, desde que recorri ao tal morcego para dar mais emoção a estes desenxabidos narrados, ele não me sai da memória.
Volta e meia, acredite, encontro-me sob os seus agouros. E, submetido a tal efeito, quem disse que consigo dar seguimento a esta narrativa?
Rizolete Fernandes, dileta amiga, me garante que gostou da inclusão desse acento vampiresco. Ao tempo em que me espicaça, alertando-me: “Tal recurso, com certeza, trará novas emoções à província licaniense. Dê asas à sua imaginação!”.
E eu, preso ao pântano da página em branco, sucumbo aos grilhões do silêncio. Daqueles tão ocos, tão vazios… que, de lá, não sai nada. Nem o medo, nem o riso, nem um naco de pavor, tão somente o vácuo.
Ah, minha Sant’Anna, salvai-me!
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De repente, um sino badala. Seu som cavo mexe com as minhas entranhas.
Levanto-me depressa, ligo o computador, abro o arquivo deste capítulo… Porém a ideia se perde nas nuvens.
“Venha, Inspiração! Acuda-me!”
Um riso com laivo de intriga chega-me às oiças. Aguço a atenção e consigo decifrá-lo:
— Acácio! É você, Companheiro?
Silêncio. Torno a insistir:
— Companheiro Acácio?!
Corro os olhos pelo quarto, investigo por detrás da porta e flagro o Companheiro em trajes de troça e zombaria:
— Eu sofrendo e você a fazer pouco da minha falta de inspiração, amigo?!
— Você, filho de Licânia, não se dizia o tal?! Inventando mundo, convocando amigos e conhecidos, tramando causos, tecendo, com ares de mestria, o menor dos incidentes. Enfim, levando tudo e a todos para o seu mundinho! E agora? — dispara o meu amigo Acácio.
Sento-me e baixo a cabeça, como se me entregasse em flagrante culpa, no pleno exercício da falta de talento.
Uma lágrima me escorre pelo rosto.
Acácio, ao presenciar o início da minha rendição, recua:
— Também isso não é causa de desespero. Todo grande escritor já passou por isso, Clauder Arcanjo!
Aquele consolo acaciano me torna ainda mais débil. O que antes era lágrima torna-se desespero profundo.
Acácio não suporta aquele quadro de escriba rendido e grita-me:
— Não, não!… Lá vem o tal morcego para o nosso lado. Só você pode salvar-nos, Arcanjo! Rápido!
Saco do fundo da gaveta das lembranças uma passagem há tempos retida no escaninho da memória. Fruto, penso eu, da última leitura do Drácula, de Bram Stoker, e…
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Bom, calma, você lerá isso no próximo capítulo. Não devemos ter pressa. Deixo, por ora, o meu silêncio com você.
Em muitos casos, acredite, a tranquilidade prepara-nos para o necessário (e valioso) suspense.
— Está rindo do quê?
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.