Joyce Moura: Não se trata apenas de uma tragédia individual, mas coletiva
A história de Gerson é daquelas que escancaram a fronteira tênue entre a vida real e a vida imaginária duas dimensões que habitam todos nós, mas que, em alguns sujeitos marcados por vínculos frágeis, traumas e negligência institucional, podem se misturar de forma dolorosa, perigosa e irreparável.
Gerson cresceu em um terreno psicológico instável. Uma vida entre rachaduras, família, loucura e desamparo. Mãe com esquizofrenia; avós com sofrimento mental; passagens por órgãos de proteção; acolhimentos e devoluções; Estado classificando seu sofrimento como “apenas comportamental”.
Esse menino se formou sem chão, sem espelho, sem bordas psíquicas suficientes para organizar o próprio mundo interno.
Para muitos jovens assim, a vida real vai perdendo cor, e a vida imaginária se apresenta como um refúgio, um lugar onde eles podem ser outros, viver outros papéis, sentir uma potência que a realidade nunca lhes permitiu acessar.
Segundo a conselheira tutelar do bairro de Mangabeira, em João Pessoa, que acolheu Gerson várias vezes, ele dizia repetidamente que queria fazer um safari. Aqui, a psicologia nos convida a ouvir além das palavras.
O safari, essa aventura perigosa, selvagem, grandiosa pode ter representado:
• Uma fuga do caos interno
O menino que nunca teve proteção, talvez sonhasse com territórios onde ele pudesse enfrentar seu próprio medo e sobreviver a ele.
• Um desejo de pertencimento a um mundo imaginário onde ele seria herói
Um safari é um cenário mítico: uma travessia. Para alguns sujeitos, representa a fantasia de renascer de si.
• Uma forma simbólica de dialogar com feras internas
Leões, na psicanálise, podem simbolizar o encontro com aquilo que é indomável dentro de nós: impulsos, dores antigas, memórias traumáticas, angústias sem nome.
No momento em que Gerson entra na jaula, não é apenas um comportamento de risco, assistido por inúmeros visitantes do Zoológico Bica, é um gesto trágico, mas carregado de simbolismo
Para alguns jovens marcados por traumas precoces, a morte não se apresenta necessariamente como desejo, mas como falta de percepção de perigo, como ruptura da barreira que separa fantasia e realidade, como um chamado enigmático para reencontrar um lugar perdido dentro de si.
Às vezes, o sujeito se aproxima do abismo não porque quer morrer, mas porque não sabe mais onde está o limite entre o possível e o impossível, entre o eu e o mundo.
O Estado olhou para Gerson e viu apenas um “adolescente difícil”. Mas não viu: a história intergeracional de sofrimento psíquico, a precariedade afetiva, as falhas de cuidado, a ausência de referência adulta estável, o pedido silencioso de ajuda.
A psicologia sabe algo que a política pública ainda demora a compreender: comportamento “difícil” é frequentemente sofrimento não reconhecido.
Jovens que atravessam a vida com buracos psíquicos profundos não buscam o perigo por rebeldia, mas porque não foram ensinados a reconhecer o próprio valor, o próprio corpo, o próprio lugar no mundo.
A morte de Gerson por uma leoa é uma imagem brutal, tão brutal quanto a vida psíquica que ele enfrentava.
É simbólico que ele tenha morrido justamente diante do animal que, em sua fantasia, representava força, grandeza, coragem e também destruição.
A vida imaginária de Gerson era maior do que a vida real conseguia acolher.
E nenhuma instituição o ajudou a construir a ponte entre uma e outra.
Há personagens da vida real que parecem saídos de mitos trágicos.
Gerson é um deles.
Ele é o menino que: habitava mundos que ninguém conseguia enxergar, carregava dores que ninguém decodificava, buscava aventuras que talvez representassem a tentativa de organizar um self fragmentado, e que encontrou a morte justamente onde buscava sentido.
No fundo, o que sua história nos diz é simples e profundo: Quando a realidade é dura demais, a imaginação pode virar abrigo.
E quando nenhum adulto protege esse abrigo, o jovem fica sozinho com suas feras internas.
Não se trata apenas de uma tragédia individual. É uma tragédia coletiva.
É a história de um Estado que falhou, de uma sociedade que não escuta o sofrimento mental, de um menino que cresceu sem espelhos, e de uma fantasia que, não sendo acolhida, terminou em morte.
Por Joyce Moura – jornalista e estudante de psicologia