Jefferson Campos: uma outra realidade emanada da madeira ferida – Por Marcio de Lima Dantas

 

Por Márcio de Lima Dantas

Professor de Literatura Portuguesa da UFRN

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Mais digno de ser escolhido é um bom nome
do que muitas riquezas; e a graça é melhor
do que a riqueza e o ouro.
Provérbios, 22:1

 

 

1.
A xilogravura é considerada como uma das mais antigas técnicas de
impressão. Desde o século VI, na China, já existia, embora seja controversa
a idade do seu surgimento. Mesmo tendo esse arco vergado por grande
distância de tempo e de geografia, permanece revitalizando-se como cepa ou
tradição cuja seara frutifica o ano todo. Ou seja, é uma forma de arte a qual
não faltam trabalhadores na gleba de terra cultivada em solo fértil.
Penso que seria agradável referenciar alguns desses indivíduos que
trabalharam ou trabalham no ofício da xilogravura, considerando alguns
como profissionais trabalhando sob encomenda, outros são bissextos, e há os
que demonstraram sua maestria e depois partiram para ganhar o pão com
outro ofício. Há um nome que acabou, através da sua fama, por ser de grande
qualidade estética, vindo a ser uma espécie o mito fundante dessa tradição
de xilogravura, quer dizer, do manuseio da madeira, depois passando o rolo
de tinta por cima, finalizando por deixar a tisna líquida em um papel. Estava
querendo falar de J. Borges.
Vale lembrar que não pretendo citar todos os xilógrafos, mesmo por que uma
grande parte foi exercer outras profissões. Ainda, outros são bissextos, não
trabalham sistematicamente, tampouco consideram a xilogravura como uma
profissão. Há de tudo.
Seguem nomes dos que estiveram envolvidos com a xilogravura. João da
Escóssia, Meneleu, João Pedro do Juazeiro, Gilvan Lopes, George Wagner,
Lu Nascimento, Pacífico Medeiros, Marcelo Morais, Alcides Sales (um dos
mais antigos xilógrafos em atividade, de Caraúbas), Severino Inácio. Porém,
há um consenso no que diz respeito ao mais importante desses artistas,
servindo de referência até alcançar os nossos dias: seu nome é Jefferson
Campos. Mas seria equívoco esquecer um grande artista de Pernambuco,
Gilvan Samico, falo da originalidade das xilogravuras dele, cujos símbolos
estão relacionados ao Movimento Armorial, de Ariano Suassuna.

2.
Mas nosso objeto de estudo é a obra de Jefferson Campos (São Paulo, 1981).
Muito pequeno ainda, migrou para a cidade de Nova Cruz (RN). Aos 12 anos
veio a ficar até hoje em Natal. Bastante precoce, com oito anos já rabiscava
seus desenhos. Aos 35 anos, por ser afeito à literatura de cordel, começou a
a produzir xilogravuras, confeccionando capas dos cordéis.
Logo em seguida, iniciou coletivamente a admiração por seu singular
trabalho. Face aos outros, aquele que contemplava sabia de uma diferença
do que conhecia até então sobre a xilogravura. Assuntava numa demora,
buscando como se fosse desvendar um enigma. Contudo, podemos separar
didaticamente para compreender. Há uma série que talvez seja a opus
magnum das muitas séries que vai fazendo sem deter muito a consciência e
os riscos da razão ou da lógica, fechando ciclos, abrindo outros. Tudo o que
elabora é de maneira intuitiva, como se já estivesse esboçado no seu íntimo,
faltando apenas o manuseio nos tacos e imprimir com a tinta.
Malgrado o artista sendo autodidata, não teve um mestre. É curioso como há
visivelmente um domínio do desenho clássico. Haja vista o primor do
desenho depois de impresso no papel. A xilogravura não é uma arte que
proclame, por meio do seu próprio desenho, o semblante, o que sucede no
espírito, através dos olhos e da boca. Jefferson Campos logra êxito nessa
tarefa bastante complicada. É suficiente se distanciar do papel onde está
presente a xilogravura para enxergar a minúcia de um retirante e seu
sofrimento.
Vejamos como surgiu essa série que tematiza um fato histórico ocorrido no
Ceará. Diz respeito às secas de 1877-1878, 1915 e 1930. Sendo a primeira a
mais grave e de uma agressividade que matou meio milhão de pessoas, fora
os milhares que debandaram das suas casas sertão a dentro. As classes
dominantes, para evitar que migrassem para as maiores cidades do Ceará,
principalmente Fortaleza, criaram Campos de Concentração, não devendo
nada ao Holocausto da Europa na Grande Guerra de 1945. Há um livro de
Raquel de Queiroz que retrata a seca de 1915: “O quinze”.
Mesmo sendo um conjunto de xilogravuras engajadas na denúncia de um
fato histórico vergonhoso para a região, a dimensão estética e sua semiose
no manuseio do signo icônico não passa ao largo, está presente na maneira
como o artista escolheu representar o objeto. No nosso caso, sobretudo na
“xilogravura de raiz” ocorre uma busca de ser o mais fiel possível ao desenho
acadêmico, ou seja, os detalhes são trabalhados para que o referente (tema)
venha a ter a maior parecença possível, sem esquecer que se trata de arte de
qualidade, circunscrita a um vocabulário que só a ele pertence. E assim, por
meio de uma sintaxe bastante distinta e diferente de seus pares, opera uma
gramática por meio de poucos instrumentos, erguendo uma realidade que nos
faz esquecer essa nossa com suas horas e suas demandas tantas. Aquele que
faz arte sistematicamente, e se identifica com esse labor, esquece quase tudo
da realidade com suas tediosas retóricas.

3.
Seguiremos nessa rodagem plena de monólitos (as xilogravuras como
monumentos de um signo criado pelo artista) múltiplos, organizando séries,
e perfazendo um conjunto detentor de uma linguagem em preto e branco,
como também manuseia as xilogravuras coloridas. O baixo relevo sobre o
taco é a “matriz de madeira gravada”. O que é escavado, mostrando as
vísceras do taco, são justas as partes que não aparecerão no que é impresso.
O que interessa, o que faz ver, é o efeito causado pela justaposição de
imagens que não necessitam deter qualquer parentesco ou identidade, e
muitos menos ocupar o mesmo lugar semântico ou simbólico. Basta ver
como organiza as xilogravuras nas quais há os elementos díspares, sem
ocupar uma mesma geografia, uma mesma circunscrição, uma mesma
comarca de sentido, na qual estejam no mesmo campo avizinhados ou
fazendo parte de uma mesma classificação.
Vale o que se organiza em busca de uma eventual harmonia, de um equilíbrio
entre o manuseio de formas e cores, proclamando, via de regra, uma
semiótica pertence à vida e ao cotidiano, quase sempre das zonas rurais, do
que chamamos Sertão. Para ser mais preciso, o dia a dia do sertão nordestino,
com seus atributos: o vaqueiro buscando a rês, a costureira, o garoto com
lenha na cabeça, a pega de gado caatinga adentro. O certo é que esse
desassossego do artista em mapear as coisas do sertão, o que está em
extinção, prestes a desaparecer com a chegada de tudo que é tecnologia nas
regiões onde impera os majestosos mandacarus, com um galo-de-campina e
uma flor.
É fato dizer o quão complexo é desenhar e pintar monocromaticamente, ou
seja, em preto, o suporte que é a madeira, contribui com suas cores claras:
eis o preto e branco. Embora hoje em dia prolifere uma plêiade de artistas
que usam cores nos seus trabalhos, não podemos esquecer que, em arte, o
simples é sempre difícil.

4.
Embora já tenhamos a oportunidade de dizer o que sucede a quem contempla
as xilogravuras de Jefferson Campos, quer seja as em preto e branco ou
coloridas, gostaria de lembrar da paragem que ocupa no lugar de tradição
vinda de muito longe. Acontece uma diferença no seu trabalho, imprimindo
uma singularidade eivada de beleza, despertando determinadas espécies de
sentimentos, tais como: comprazer-se em estar vivo, ânsia por superar certas
atribulações (efeito sanador, curativo da arte), ancorar sua mente no
ancoradouro do silêncio ou achegar-se de uma obra de arte e sentir um bem
estar.
Vejam só, tudo o que disse é de conhecimento de todos, quer assome no
espírito, involuntariamente, ou já faça parte de quem se exercita indo a
exposições. Ainda mais quando estamos diante de xilogravuras, um símbolo
do Nordeste, que nos representa em uma ancestralidade presente no nosso
Imaginário, como estrutura antropológica que é, vinda das bandas do
medievo, aportando por aqui, trazida por portugueses, chantando de forma
mais robusta no Nordeste.
A obra de Jefferson Campos passa a ideia de um prazer a mais, no sentido
de que não faz por obrigação ou em busca de ganhar mais dinheiro. Falo da
presença necessária a todo artista visual, acontece que, no artista que
discorremos, com seu estilo diferente, também há muito da sua
subjetividade, da sua intuição e do prazer que gestou ao produzir
determinada xilogravura. O certo é que temos um homem ancho de si, de
corpo e de alma.

 

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