O ALIENÍGENA (PARTE XXVIII)
Clauder Arcanjo*

Moça com um gato preto, de Henri Matisse.
Goiaba e Nabuco não arredaram pé da entrada da caverna, para dentro da qual haviam corrido e, em seguida, desmaiaram os sete valorosos defensores de Licânia.
Alguns bichos selvagens pensaram em se aproximar da citada loca, Goiaba e Nabuco arreganharam os dentes, protegendo os “apagados pelo medo”.
— Miau… Shifzzhh… Miau…
— Au… Au… Au…
Os sete dormiram horas. Eu, como relator desta novela esquisita, nunca imaginei que o medo causasse tanto sono.
Bom! Muito tempo depois, o primeiro a despertar foi o João Américo. Este, ao perceber que os animais eram do bem, sunga as calças e começa a contar histórias para os dois:
— Como é o nome do nobre bichano?
— Miau… Shfzzz…
Não se sabe como (mistérios da literatura), o protofilósofo de Licânia passa a entender a língua dos felinos:
— Sim, Nabuco. Belo nome! Com certeza, deve ter sido um tributo ao nobre abolicionista Joaquim Nabuco. Pois bem, Nabuco e Goiaba, saibam que, nesse tempo em que fiquei de vigília, filosofei em forma de narrativas curtas. Vocês estão interessados em conhecê-las?
Goiaba, já vacinado pelo latinório de João Américo, quis esboçar uma contundente negativa. No entanto, o inocente Nabuco se antecipa, arregala os olhos curiosos e concorda:
— Miau… Miau…
— Comecemos então com a Fábula da Gatinha. Era uma vez… Melhor, vou logo direto: era noite alta quando um barulho espanta todos os animais na selva. Uma gatinha perde-se dos outros bichanos e passa a miar em desespero. Aquele miado doía-me no peito, enquanto eu sonhava. Mas, vocês podem imaginar, eu não poderia acordar! Caso acordasse, quem socorreria a pobre criatura?
— Shifff… Puffshifzzz…. Miau!
— Sim, Nabuco, a gatinha era linda: uma princesa.
— Shifff… Shifzzz….!
— Claro, digo isso com todo respeito. It’s a lady cat! Ou como diziam os latinos: pulchra cattus.
Goiaba, ao perceber que a fabulação poderia se perder na língua de Ovídio, arreganha os dentes:
— Auuu… Au!
Porém, o narrador, empolgado com o verbo, nem dá bolas para o protesto do cão. Qual o quê, dispara mais ainda a sua história, metido (e perdido) nela com gosto de gás:
— Resolvo orar para todos os deuses. Deuses dos egípcios, deuses de Roma Antiga, deuses…
— Auuu… Au! Auuu…
— Sim, claro, e para nosso Senhor Jesus Cristo. No que fui, de pronto, atendido. Sem falar na intercessão da Virgem Maria. Vocês sabem: mãe é mãe. E do Salvador? Ah! O Filho tem um prestígio do cão!
— Auuu… Au!
— Falo assim, Goiaba, mas com todo respeito. Respectus bonus est et mihi placet!
— Shifff… Shifzzz….!
Nesse exato momento, os seis medrosos, já despertos, acompanham a narrativa com um pé atrás.
João Américo resolve fechar a primeira fábula com um acento gótico:
— Eis que, do fundo da selva escura, surge um vampiro. Ele voa para a garganta da gatinha e…
Antes de concluir a sua sentença, um morcego mergulha na direção do interior da caverna.
Caro leitor, Goiaba, Nabuco, João Américo (sem mencionar os outros seis valorosos filhos de Licânia) deram um grito que espantou todos a bicharada do Serrote da Rola. Sem falar que nunca vi gente e bicho para correr mais ligeiro. Desceram a serra no rumo de Licânia, levando nos peitos tudo que encontravam pela frente.
— Miau!
O que foi esse grito? E eu sei?! Devem ter pisado no rabo do Nabuco na louca disparada.
Os nove gritavam, uníssonos:
— Valei-nos, Senhora Sant’Anna!
& & &
Caro leitor, paro por aqui. Está rindo do quê?
Ninguém está levando a sério a minha narrativa. Então, dou-lhe um ponto final. Encerro esta prosa e vou cuidar da minha vida.
Por quê? Ora, porque se disso não colho a sua atenção, muito menos obterei de meia dúzia de leitores.
Sei que a vida de escritor em nosso país nunca foi fácil, porém o meu sacrifício…
— Não, não!… Lá vem o tal morcego para o meu lado. Socorro!
Em desespero, fecho a novela por hoje.
Eu prometo nunca mais me meter com literatura gótica.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.