O ALIENÍGENA (PARTE XXVI)

 

Clauder Arcanjo*

Os guarda-chuvas, de Pierre-Auguste Renoir

Inicio este capítulo com a ânsia da vingança. Ainda ressoa em meus ouvidos a praga que soltei: “Engraçadinho. Pois eu acertarei as contas no próximo capítulo. Ficarão apenas sete, pois darei cabo ao seu destino. E que fim terrível você terá, filósofo de meia-tigela!”

— Au… Au… Au… Fsiuhh… Au… Au…

Em linguagem canina, Goiaba me pede desculpas pelos últimos latidos de troça. Lambe-me os pés, e eu, depressa, declaro o meu perdão:

— Sem remorsos, Goiaba. Sigamos. Até porque este filósofo ainda me será útil nas desventuras que se aproximam.

— Au… Au… Au…

Rio, enquanto afago os pelos do pescoço do bom cão.

 

& & &

 

Lucas San, que andara relendo Guerra e Paz, de Tolstói, propôs um avanço à Napoleão:

— Alta madrugada, quando cair essa chuva que já vem no horizonte, a gente se arma e parte para cima. Ninguém esperará que possamos desferir nosso avanço em tão más condições: o efeito surpresa será fundamental para vencermos nossa batalha.

— E onde estão os guarda-chuvas? — perguntou João Américo.

— Em se tratando de luta aberta, os combatentes não devem portar guarda-chuvas. Seria uma forma de revelarmos a nossa posição. E nos tornaríamos alvos fáceis — ponderou o Cabo Jacinto Gamão.

— Mas, em vários filmes de guerra, seu Jacinto, eu assisti a muitos soldados usando capas de chuva nas trincheiras. Onde estão as nossas? — indagou Paulo Bodô.

— E vão também querer um chazinho bem quente antes do embate, seus combatentes éguas? — perdeu o controle, o Cabo.

Lucas San afastou o representante da lei da frente das discussões. Pouco depois, empostou a voz em tom de discurso e, de punho cerrado, exortou a todos para o sacrifício pessoal:

— A ocasião nos exige. É hora de pensarmos menos no destino de cada um e mais no de nossa província. O futuro nos cumulará de medalhas. Seremos lembrados por todas as gerações vindouras. Em cada casa, alguém sempre relembrará esta noite: madrugada em que nos sacrificamos em prol do bem comum. Licânia livre!

— Licânia livre! Licânia livre!…

 

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Era meia-noite quando a chuvarada varreu a mataria no topo do Serrote da Rola. Todos encolhidos no fundo da única caverna existente.

Lucas San convocou-os:

— Chegou o grande momento. Vita nostra in urbe!

João Américo, ao ouvir a convocatória em latim, apresentou-se:

Hic ego sum.

No fundo da caverna, Zé Aguiar reclamou:

— Vocês vão brigar em latim? Se for assim, eu ficarei por aqui, amigos, pois faltei a todas as aulas desse idioma!

O protofilósofo de Licânia protestou:

— A chuva nunca lavará toda a ignorância que pesa sobre este nosso chão!

Nesse momento, um raio, seguido de um violento trovão, calou a todos.

Goiaba latia entre uivos de desespero.

 

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Farei aqui mais uma pausa. Fundamental e necessária; embora, acreditem, contaminada pelo riso. Darei as devidas explicações.

O protofilósofo de Licânia, no seu arroubo cívico, puxara o Goiaba pela coleira, amarrando-o junto ao mastro da bandeira de Licânia. Esta que, até então, tremulara no sopro da brisa da noite, apresentava-se murcha e molhada pela chuvarada. E o pobre Goiaba, tremendo de medo e frio, sofria ao pé do mastro. Lá fora, o uivo da chuva se anunciava como prenúncio do possível sacrifício daquele valoroso canino.

— Au… Cain… Cain… Au, au, ui… Cain… Ai, au…

Que triste sorte aguarda esse pobre cão.

 

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— Goiaba seria, então, a primeira baixa?

Não tomei ainda a minha decisão, curioso leitor. Saberemos disso no capítulo que se avizinha.

— Au… Cain… Cain… Au, au, ui… Cain… Ai, au… Brrh…

Em desespero, Goiaba latia solitário debaixo de uma chuva forte, ensopado sob raios e trovões.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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