Adultização de crianças e o Congresso: a força da indignação popular no Legislativo
O Congresso Nacional não se move apenas por interesses pessoais, políticos, pareceres técnicos ou debates racionais. Ele também se move quando a pressão popular ganha corpo e, sobretudo, quando é carregada de emoção. A aprovação do Projeto de Lei 2628/2022, conhecido como “ECA Digital”, mostra isso com clareza.
O projeto, que estabelece regras para proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual, ficou dois anos engavetado na Câmara. Era quase proibido falar dele: a maioria conservadora reagia com hostilidade, tratando-o como ameaça à liberdade de expressão. O clima era de guerra: bastava mencionar o texto para a temperatura do plenário subir. Essa resistência não é um caso isolado. Diversas proposições que tocam em temas sensíveis, como a Lei da Ficha Limpa, o Marco Civil da Internet ou, mais recentemente, a Lei de Combate às Fake News, enfrentaram longos períodos de paralisia até que a sociedade organizada exerceu pressão suficiente para destravar a pauta e enfrentar interesses.
No caso do ECA Digital, tudo mudou em questão de dias, não por articulação política, mas por um gatilho emocional. O influenciador Felca publicou um vídeo expondo, de forma contundente, os riscos enfrentados por crianças na internet: exposição precoce à sexualização, assédio, conteúdos violentos. A partir dali, o que era pauta técnica virou comoção pública e o termo “adultização de crianças” ganhou popularidade.
A indignação tomou as redes, as hashtags se espalharam, reportagens repercutiram o tema e a pressão sobre os parlamentares tornou-se incontornável. O vídeo alcançou 44 milhões de visualizações no YouTube. Resultado: o projeto que não saía do lugar foi aprovado com votos de todos os espectros políticos. Uma guinada repentina que só se explica pelo medo de ignorar a comoção popular, especialmente quando ela ganha as redes sociais.
O episódio revela um aspecto central da política: influenciadores digitais tornaram-se atores capazes de influenciar a agenda legislativa. Manuel Castells, ao analisar a sociedade em rede, mostra que a política se estrutura pela passagem da indignação individual para a ação coletiva. O caso do ECA Digital confirma essa tese: uma manifestação individual, potencializada por algoritmos e redes de afeto, transformou-se em mobilização coletiva com impacto direto no Legislativo.
Habermas lembra que a esfera pública exerce pressão comunicativa capaz de obrigar os sistemas institucionais a responder. Mais do que a racionalidade dos argumentos, foi o componente emocional que impulsionou o processo. Chantal Mouffe observa que não é a razão, mas o afeto, que confere densidade às disputas políticas. A política se faz não apenas com ideias, mas com paixões, identidades e sentimentos compartilhados.
O caso da adultização das crianças mostra como questões antes tratadas como secundárias podem ascender à prioridade máxima quando ativam o senso moral coletivo. O episódio evidencia um padrão: a mobilização é essencial como fator de pressão sobre os parlamentares. O Congresso pode até resistir a argumentos, mas não resiste à comoção popular. Essa é a engrenagem da política brasileira, uma engrenagem que se acelera na era digital.
Vanessa Marques: jornalista, mestre em comunicação na Espanha, e atua há 20 anos na comunicação política, com 13 anos de experiência na Câmara dos Deputados. Mestre em comunicação na Espanha e pós-graduada em economia e ciência política.
Por Vanessa Marques
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