Uma mulher trans pioneira na UFERSA
Fotojornalista e advogada trans, Maitê Ferreira traduz a sua jornada pela carreira acadêmica, apresenta a sua visão sobre o transativismo e acolhimento na sua universidade e inspira futuros universitários trans.
“É um privilégio fazer parte desse mundo, embora não devesse ser e nós devemos lutar para que não seja’’. Maitê Ferreira é uma advogada e fotojornalista natural de Fortaleza, Ceará. Veio a Mossoró com o intuito de estudar Direito na Universidade Federal do Semi-árido (UFERSA). Desde então permaneceu na região potiguar e já coleciona alguns títulos na área acadêmica do Direito. Ela se tornou a primeira mulher trans da UFERSA a obter o bacharelado em Direito, como também a primeira mulher trans pós-graduada e mestranda na área. Apesar dos títulos, ela atua na área do fotojornalismo e na assessoria de comunicação de dois sindicatos da cidade de Mossoró. Ativista pelos movimentos sociais, ela nos conta um pouco sobre a sua trajetória universitária, sobre seus percalços na área mercadológica do Direito e ainda aconselha futuros universitários trans.
Primeiramente, como se deu a sua trajetória para chegar à universidade e como está sendo essa experiência?
Entrei a partir da II edição do Exame Nacional do Ensino médio, ocasião em que passei em dois cursos: coloquei Ciências Sociais na UFC, o qual fiquei em terceiro lugar, como primeira opção; e Direito na UFERSA, opção a qual passei na segunda chamada, em segundo lugar. Meu coração sempre foi das humanidades. E meu coração pedia ciências sociais… Mas eu escolhi seguir “minha cabeça”, a razão, e a razão mandava eu ir embora da minha terra Natal: Fortaleza-CE. Então no dia 29 de janeiro de 2012, um dia muito chuvoso, eu cheguei aqui em Mossoró e começou minha história. Vim estudar na UFERSA, universidade que amo e prezo muito, onde me graduei e colecionei vários “títulos” que só revelam a exclusão das pessoas trans no ambiente acadêmico: sou primeira mulher trans a obter o bacharelado em Direito da UFERSA, a primeira mulher trans a ingressar num curso de pós-graduação em Direito na UFERSA, a primeira mulher trans a ser representante discente num colegiado de pós-graduação e a primeira mulher trans a ingressar num Mestrado em Direito no interior do Nordeste. Lamento pelos cortes que a UFERSA está sofrendo, assim como lamento para o horizonte das universidades públicas e institutos federais no Brasil. Este local emancipa mentes e forma a cidadania. É um projeto bárbaro cortar recursos de locais que presta serviços tão valiosos ao povo.
O Brasil é um dos países que mais violentam pessoas trans, a expectativa de vida chega a ser apenas a metade da média nacional. De acordo com o seu relato, já se torna visível que as pessoas trans ainda não ocupam de forma plena o espaço acadêmico. Apesar de tudo isso, você sente que a sua universidade é um espaço acolhedor para as pessoas trans?
Acredito que sim. A UFERSA foi uma universidade pioneira ao aprovar o nome social ainda em 2014, com apoio explícito do atual reitor Arimatéa. Eu fui beneficiária dessa política pública. Com a abertura do curso de medicina na UFERSA, pouco tempo depois foi fundado o ambulatório que oferece atendimento ao público de algumas especialidades médicas, como endocrinologia. Eu, como mulher trans, faço terapia de reposição hormonal, e recebi “porta na cara” de vários profissionais meramente por ser trans, e olhe que estava procurando no particular! Somente através do ambulatório da UFERSA, com Dra. Aline Gurgel que lá leciona e atende pelo SUS, consegui ser atendida e acompanhada em minha TH. A UFERSA é muito importante na minha vida, tenho orgulho de hoje cursar o primeiro mestrado em direito no interior do Nordeste, tenho muito zelo e muito amor por essa universidade
Você acha que existem formas da sua universidade ser ainda melhor quanto a isso? Existem intervenções do transativismo dentro dela?
De maneira muito esparsa existe o transativismo e o ativismo LGBT, mas em geral as pessoas trans, na UFERSA e em outras universidades públicas, são apenas pessoas.
A universidade, em sua forma, é um espaço feito para ser diverso e plural. Então ela está desde sua formação preparada para acolher e debater as diferenças.
O problema reside no “conteúdo” das universidades, em pessoas conservadores que podem, individualmente, refletir posições preconceituosas que existem dentro da nossa sociedade – mas essas pessoas não representam a universidade.
Justamente por a universidade ser um espaço indissociavelmente plural, livre e diverso ela ajunta os seus inimigos – os inimigos da diversidade, da liberdade, da tolerância – que se unem num projeto não apenas de destruição da universidade, mas de fim da educação pública – em prol de um ensino mercantilizado e preocupado unicamente com as necessidades do mercado.
Agora com relação ao mercado, você já teve experiências fora da universidade, na área mercadológica do Direito? Caso sim, como foi a sua vivência? Caso não, o que te levou a isso?
Além da prática jurídica que exerci como parte da minha formação no bacharelado em Direito, nunca atuei na área nem estagiei. Sempre me senti como um corpo estranho dentro daquele curso que exigia tanto as aparências, e se eu nunca me senti bem enquanto homem, quiçá enquanto advogado que é um estereótipo ainda mais estreito. Tanto que passei na OAB ainda em 2018, e somente em 2019 após minha retificação de nome e gênero que me senti confortável com a ideia e corri atrás de tirar minha carteira da OAB.
Além disso, minha atuação profissional sempre foi enquanto fotojornalista. Trabalho na assessoria de comunicação de dois Sindicatos na cidade: o Sindicato das Servidoras e Servidores da Saúde Pública estadual (SINDSAÚDE-RN) e o Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores Federais em Saúde, Trabalho e Previdência Social (SINDPREVS-RN). Sempre tive um pé nos movimentos sociais e na militância por um Brasil e um mundo novo, e isso também me afastou do tradicional mercado que uma tradicional pessoa formada em Direito poderia se encontrar.
Mas hoje, prestes a tirar a OAB, penso em utilizar a prerrogativa de advogada para ajudar minhas semelhantes em um projeto de assessoria jurídica popular: mulheres que sofrem violência no âmbito doméstico e no ambiente de trabalho, pessoas LGBTIs que sofrem LGBTIfobia, e integrantes de movimentos sociais que sofrem perseguição política. Espero poder encontrar apoio e tempo necessários para fazer essa ideia brotar e florescer.
Para finalizar, qual conselho daria a uma pessoa trans ao ingressar na universidade?
Procure conhecer as políticas que a universidade já oferece voltadas às pessoas trans e usufruir delas enquanto é tempo. Nome social (ainda) é um direito nas instâncias da administração pública.
Procure utilizar dos serviços de atendimento psicológico que sua universidade oferece. A terapia é essencial para o fortalecimento da saúde psíquica das pessoas trans. Se sua universidade possuir curso de medicina e Ambulatório/residência médica, procure conhecer os serviços oferecidos pelos residentes, e verifique se inclui a especialidade de endocrinologia. O atendimento médico-profissional nas universidades tende a ser mais inclusivo e humanizado, formando assim um ambiente mais acolhedor para pessoas trans.
Por fim, busque se integrar no movimento estudantil. Cobre cota de pessoas trans em Centro Acadêmicos, em DCEs, em tudo. Representatividade trans importa, e se não importar, denuncie esses espaços enquanto transfóbicos. Tentem não apenas conhecer, mas integrar e reunir todas as pessoas trans da sua universidade. Pensem em projetos de cidadania e de inclusão social. Vivam e desfrutem da escassa oportunidade em estudar numa universidade pública brasileira: é um privilégio fazer parte desse mundo, embora não devesse ser e nós devemos lutar para que não seja.
Luane Fernandes, estudante de jornalismo – [email protected]