ENTREVISTA: DR. ULISSES LEVY SILVÉRIO DOS REIS E AS ELEIÇÕES AMERICANAS

Neste sábado (07) a imprensa americana projetou Joe Biden como o novo presidente americano

Se confirmada as projeções dos veículos de imprensa, o democrata Joe Binden, será o 56º presidente americano a partir do dia 14 de dezembro, quando isto deve acontecer oficialmente. Diante uma eleição complexa e acirrada, fomos procurar informações com quem entende e entrevistamos o professor doutor ULISSES LEVY SILVÉRIO DOS REIS, Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC), com ênfase em Direito Constitucional. Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGD/UFMG) e que desenvolve pesquisas na área do Direito Constitucional, com foco nas discussões sobre direito comparado, autoritarismo e democracia.

Acompanhemos abaixo a entrevista, lembrando que ela foi realizada na sexta-feira (08), portanto, antes do anúncio das projeções realizadas pela imprensa americana, dando como certa a vitória de Joe Biden.

 

O Mossoroense – Como o sr. analisa esta atual campanha americana?

Ulisses Levy Toda a campanha eleitoral 2020 nos Estados Unidos da América (EUA), que, na verdade, iniciou ainda em 2019 com as primárias do Partido Democrata, representou uma confirmação do que se esperava: um país extremamente dividido/polarizado cuja população parecia mais que estava escolhendo a personalidade preferida (especialmente no caso do Presidente Donald Trump) que o responsável pela gestão da Casa Branca para o próximo quadriênio. Ao mesmo tempo, ela testou a capacidade de ratificação nas urnas do modelo governamental populista autoritário que se espalhou pelo mundo nos anos 2010 em decorrência da crise financeira de 2008. Contudo, não podemos esquecer que houve dois elementos centrais responsáveis por modificar o rumo da campanha: a eclosão da pandemia global causada pelo novo coronavírus, que ceifou milhares de vidas de estadunidenses e provocou um grande baque na economia do país; além da morte de George Floyd, em Minneapolis, no dia 25 de maio de 2020, o que gerou a onda de protestos liderada pelo movimento Black Lives Matter. Quando juntamos todos estes contextos, temos a receita preparada para o acentuamento de emoções conflitantes, situação galvanizada por um Presidente que, na sua campanha eleitoral, esforçou-se por dividir ainda mais o país. Foi uma campanha difícil e que, a despeito de qualquer um dos candidatos ser logo mais confirmado como Presidente, legará para o mandatário um país provavelmente ainda mais rachado que em 2016.

 

OM – Caso se confirme a vitória do candidato Joe Biden à presidência, o que esperar das relações Brasil x EUA?

UL – Creio que a maior preocupação dos EUA, no momento, sejam seus problemas domésticos. Assim sendo, não acho que, ao menos nos primeiros anos, a equipe de Joe Biden vá olhar com muito cuidado para o Brasil, salvo no aspecto da política ambiental. No geral, minha aposta é a de que o staff do democrata tentará dar um recomeço aos compromissos bilaterais entre o Brasil e os EUA. A tendência é a de que discursos ideológicos de extrema direita, tal como professados pelo Chanceler Ernesto Araújo, pelo Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (PSL) e pelo Assessor Especial Filipe Martins, todos discípulos do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, cedam espaço aos compromissos programáticos em termos econômicos e ambientais a serem apontados pela gestão Biden. Não acho que o democrata deseje internacionalizar ou tomar de conta da Amazônia, como determinados setores apregoam. Acredito que a abordagem para a preservação ambiental se dará por mecanismos de pressão econômica. Se, de um lado, existe a tendência de oferecimento de ajuda para lidar com o problema, de outro, o novo governo dos EUA indica que exigirá resultados para a manutenção das parcerias.

 

OM – Caso Trump consiga sua reeleição, muda alguma coisa no painel político americano com novos nomes na Câmara e Senado? 

UL – Até o momento em que elaboro esta resposta, o cenário da Casa dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) e do Senado dos EUA tem mudado pouco. Os democratas estão aumentando suas cadeiras no Senado, mas não garantindo maioria; na Casa dos Representantes, estão perdendo assentos, embora ainda assegurando leve maioria. Se você refletir bem, esse já foi o cenário da Presidência de Donald Trump entre 2016 e 2020. Com maioria no Senado e minoria nos Representantes, os EUA tiveram um governo que legislou bastante via decretos executivos e teve barradas várias medidas legislativas no campo orçamentário (até agora, nada de Muro), mas conseguiu concretizar o fascínio do Partido Republicano: nomear o maior número possível de juízes para os tribunais federais e para a Suprema Corte, que, no momento, tem ampla maioria conservadora. Creio que, se Donald Trump vencer a eleição, o seu relacionamento com o Legislativo permanecerá conflitivo, mas contando com forte apoio no Senado para passar os temas de interesse do partido.

 

OM – Que aspectos tornaram esta campanha tão acirrada?

UL – Acredito que, somando-se aos elementos que já indiquei acima (deflagração da pandemia do novo coronavírus e o assassinato de George Floyd com a ascensão do Black Lives Matter), é possível apontar a efervescência do binarismo de sentimentos entre pessoas que veem algo como os seus “valores nacionais” sendo supostamente desprezados por uma “elite intelectual” que acredita nos dividendos gerados pela ciência, pela globalização e pela proteção ambiental. Se nós abrirmos aquele mapa interativo veiculado por diversos sites que mostra a apuração dos votos em cada estado, veremos que os votos democratas vêm quase todos dos condados situados nos grandes centros urbanos; por outro lado, os votos republicanos são oriundos de locais mais afastados das grandes cidades. Isso demonstra um recorte muito interessante, que já vem sendo explorado na academia, acerca de dois perfis de eleitorado: aquele que vê os elementos que citei como promotores do desenvolvimento e os demais, cuja visão de mundo sugere que uma administração democrata seria responsável por tirar mais empregos do país, privilegiar exclusivamente direitos de minorias, transformar os EUA num país socialista (nada mais irônico numa administração Joe Biden) e galvanizar enfaticamente pautas progressistas. Ou seja, tudo indica que essa eleição foi marcada por um país de aproximadamente 300 milhões de pessoas que detêm visões opostas de mundo. O desafio vai ser como lidar com isso para o amanhã.

 

OM – As alegações Trump sobre as eleições colocam em xeque a credibilidade do sistema? Há alguma projeção que isto possa ser modificado algum dia?

UL – Claro que sim. Desde antes do início da eleição, semanas antes, o Presidente Donald Trump já vinha fazendo acusações de que haveria fraudes e ele lidaria com isso por meio da judicialização. No primeiro debate, ele chegou inclusive a se negar a censurar um grupo supremacista branco (Proud Boys) e disse uma expressão vista por muitos como uma mensagem (“stand back and stand by”). A verdade é que o sistema eleitoral dos EUA é, para nós, muito confuso. A existência do Colégio Eleitoral, a inexistência da regra “uma pessoa, um voto”, a votação por delegados, o escrutínio em voto impresso e a contagem manual são, para nós, circunstâncias que não se afinam com a nossa visão de democracia.  Algumas destas regras podem ser modificadas mais facilmente, como o voto por cédulas, mas a modificação do sistema do Colégio Eleitoral perpassa pela dificuldade de depender de emenda constitucional. Diferentemente da nossa, a Constituição dos EUA não depende apenas da aprovação por maiorias qualificadas da Casa dos Representantes e do Senado: lá, é necessário também que uma emenda seja ratificada por 3/4 das Assembleias Legislativas dos estados. Nesse caso, estados pequenos iriam “perder poder” frente às altas densidades populacionais de unidades geográficas como Nova Iorque e Califórnia, por exemplo. Dificilmente o sistema eleitoral dos EUA migraria para um sem a votação indireta sem que fosse feita uma nova Constituição. A alternativa seria que se derrubasse a regra dos Colégios Eleitorais do winner takes it all, passando os votos dos delegados a representarem a proporção dos votos dos eleitores dos seus respectivos estados. Isso é possível, mas não provável, pelas mesmas razões que levam uma emenda constitucional nesse sentido a ser de dificílima aprovação. Apesar de tudo, após os recentes comentários antidemocráticos do Presidente Donald Trump, diversas lideranças políticas (inclusive do Partido Republicano) se voltaram contra o seu discurso e revigoraram o valor da democracia dos EUA. Tivemos até o episódio das redes de televisão deixando de transmitir o seu pronunciamento eivado de mentiras, algo que pode servir de lição para os meios de imprensa do restante do mundo (inclusive do Brasil).

 

OM – Como você traça o perfil de Joe Biden?

UL – Joe Biden, no momento, consegue encarnar bem o espírito de um “anti-Trump”, mas todos sabem que ele não é uma pessoa propriamente do campo da esquerda. Provavelmente essa qualificação recaiu sobre ele por conta da polarização deflagrada pelo discurso divisivo de Trump; afinal, qualquer pessoa que polarize com um candidato de extrema-direita será visto como alguém à sua esquerda. Biden é um político experiente (dezenas de anos de carreira), pragmático, já foi Vice-Presidente por oito anos (nos dois mandatos de Barack Obama) e, para alcançar essa indicação do Partido Democrata, conseguiu captar a necessidade de apoiar pautas mais distributivas do poder econômico (aqui coloco particularmente o seu apoio sobre o Affordable Care Act, conhecido como “Obamacare”). Se confirmada sua eleição, não faltarão críticas a serem formuladas acerca de sua administração oriundas dos setores mais à esquerda do Partido Democrata, seja por parte do veterano Senador Bernie Sanders ou da novata, mas muito ativa, Deputada Alexandria Ocasio-Cortez, que parecer ser a “nova cara” dos democratas. Precisamos analisar com calma, no futuro, como Biden lidará com a necessidade de equilibrar suas próprias convicções junto com os pleitos formulados pelas novas lideranças que viabilizaram sua provável vitória.

 

OM – E Trump. Há a possibilidade de que ele continue um “líder”, mesmo ocorrendo sua derrota?

UL – O Presidente Donald Trump mostrou que possui capital político para isso. De um candidato desacreditado pelas pesquisas de intenção de voto, ele vem se mostrando um páreo duro, em especial por ter conseguido vencer em alguns importantes estados pêndulos (aqueles que não possuem uma identidade definida republicana ou democrática). A minha dúvida é se os demais membros importantes do Partido Republicano aceitarão ter a sua imagem continuamente ligada a um (ex-)Presidente que passou anos descredibilizando as instituições dos EUA e, no meio da eleição, acusou todo o processo eleitoral de ser fraudulento. As suas falas recentes no sentido de exigir a suspensão da contagem de votos, algo que desprezaria a vontade de dezenas de milhares de eleitores, aqui incluídos os membros das Forças Armadas que estão em missões no exterior, minaram sobremaneira a credibilidade que ele detém junto ao Partido Republicano. A dúvida que fica é: poderá o Partido renunciar à liderança eleitoral legada por Donald Trump? Donald Trump pretende continuar nos holofotes, dada sua personalidade egocêntrica, ou pretende, por exemplo, passar seu legado para um filho? São questões que, no momento, só podemos especular, mas vejo ainda nele um capital político importante. Mas é claro que, se isso não for adequadamente administrado, pode se esvaziar rapidamente.

 

OM – O que justifica a grande votação de imigrantes em Donald Trump?

UL – Pelo que pude acompanhar, o Presidente Trump teve alto percentual de votos que veio de dentro da comunidade latina que vive nos EUA, em sua maior parte na Flórida. Tudo indica que estes votos são majoritariamente provenientes de pessoas que fugiram de países como Cuba e Venezuela, por exemplo, ou os seus descendentes. Como o governo Trump adota, ao menos no discurso retórico, uma tática de “linha-dura” contra as administrações dos Castro, em Cuba, e de Maduro, na Venezuela, os migrantes latinos, vários deles foragidos (ou descendentes deles) dos seus países, compram com muita facilidade essa ideia de que cabe aos EUA liderar uma ofensiva global contra os aludidos governos. Inclusive vários congressistas cubanos (ou descendentes) eram frontalmente contrários às políticas de aproximação EUA-Cuba promovidas à época do ex-Presidente Barack Obama. Para nós, que estamos longe, esse apoio pode parecer um absurdo quando olhamos para o que vem acontecendo nos centros migratórios, mas esta é uma população que não passa pela citada experiência e, no seu horizonte, não enxergam tal possibilidade. Em outra vertente, também foi possível verificar, por meio da imprensa, um relevante contingente de latinos que justificaram o seu voto em Trump porque ele supostamente seria o candidato que defende os “valores tradicionais”. Somadas, estas contingências ajudam a explicar esse fenômeno.

 

OM – O que podemos esperar desta recontagem de votos?

UL – O procedimento de recontagem de votos não é alheio às experiências recentes das eleições dos EUA. Houve o caso mais famoso, em 2000, quando da eleição disputada entre Al Gore (Democratas) e George H. Bush (Republicano). Nas eleições de 2016, houve também recontagem de votos solicitada por uma candidata que não faz parte dos dois principais partidos. O fato é que a recontagem de votos nunca foi definitiva para selar o destino de um candidato à Presidência da República. Em 2000, Al Gore desistiu de questionar o caso na Suprema Corte. Na última eleição (2016), a recontagem de votos apenas confirmou a primeira totalização. Como é um procedimento complexo e que envolve muitos documentos, é natural que possa haver um erro ou outro. Contudo, não creio que eventuais recontagens possam alterar o resultado do pleito, até mesmo porque o candidato Joe Biden vem ampliando consideravelmente suas vantagens em alguns estados chave. Ou seja, seria necessária uma conjunção ampla de totalizações erradas para que o fim do pleito sofresse sensível modificação. No fim, para nós, brasileiros, ficou aquele sentimento de confirmação que o nosso procedimento eleitoral, que conta com as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral unificada, é muito mais eficiente que o dos norte-americanos.

 

OM – Que avaliação o Sr. faz do mandato do presidente Donald Trump?

UL – Donald Trump fez uma administração ambivalente na economia e ruim em muitos outros sentidos. Na economia, dizia-se um liberal, mas se caracterizou por ser um dos Presidentes mais protecionistas de todos os tempos. Brigou com entidades comerciais internacionais e paralisou inclusive a Organização Mundial do Comércio pela não indicação de árbitros para os seus painéis. É preciso reconhecer que a economia estadunidense cresceu durante o seu mandato, mas muito disso se deu por conta das medidas implementadas pelo governo Barack Obama. Quando veio a pandemia do novo coronavírus, a inabilidade de Trump está fazendo com que os EUA demorem muito a recuperar-se economicamente. Em outros campos, seu mandato retrocedeu anos e anos de liderança dos EUA no campo global. Ele ataca demasiadamente as instituições multilaterais de governança. No meio da pandemia, retirou os EUA da Organização Mundial de Saúde. Também retirou o Estado norte-americano do Acordo de Paris, que tem por objetivo incitar os países à adoção de metas de sustentabilidade ambiental. Mesmo se dizendo o líder do “mundo livre”, fez diversos acordos e aquiesceu com os interesses de Ditadores da Ásia e do Oriente Médio. Sequer sua principal promessa de 2016, a construção do muro com o México, saiu efetivamente do papel (o pedaço de muro construído até então é ínfimo). Isso para não falar nos centros de detenção de migrantes, alvos de preocupação global, que colocam pessoas em condições sub-humanas de tratamento enquanto esperam meses por uma audiência no Juízo da Migração. Há vários e vários denúncias de que essa política federal é responsável pela separação de mães e pais de suas crianças de tenra idade. Na política interna, Trump colecionou disputas e desentendimentos com diversos atores. Para piorar, no último trimestre do seu mandato, violou, em associação com o Partido Republicano, o entendimento firmado em 2016 de que, em fim de mandato, um Presidente deve deixar a nomeação para a Suprema Corte para o seu sucessor (refiro-me à indicação da juíza Amy Coney Barrett no lugar da falecida Ruth Bader Ginsburg), algo que foi proibido ao ex-Presidente Obama em 2016, após a morte do ex-juiz Antonin Scalia. Enfim, o saldo de Donald Trump, além de um país extremamente dividido, é a desconstituição de vários mecanismos importantes que tornavam os EUA uma liderança global. Se realmente confirmar a vitória, cabe a Joe Biden trabalhar todos estes pontos. É o desafio de uma geração.

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