Trabalhadores da Vinha: Reflexão para o XXVI Domingo do Tempo Comum – Pe. Cornelio Rodrigues

Por Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues.

 

Neste vigésimo sexto domingo do tempo comum, a liturgia nos oferece Mateus 21,28-32 para o Evangelho, texto que contém a curta parábola dos dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na sua vinha. Embora haja um considerável intervalo espacial e temporal entre a parábola proposta no domingo passado (parábola dos trabalhadores da vinha” – Mt 20,1-16) e a de hoje, é inegável a relação entre as duas, como veremos a seguir.

Iniciamos com a devida contextualização, para chegarmos a uma interpretação mais adequada do texto. A parábola está inserida no acirrado confronto entre Jesus e as autoridades religiosas de Jerusalém, os sumos sacerdotes e os anciãos do povo. Com isso, concluímos que Jesus já se encontra em Jerusalém e, portanto, seu ministério está em sua última fase. Após uma entrada triunfante na cidade (cf. Mt 21,1-11), logo começaram os conflitos com as autoridades que não aceitavam sua proposta de Reino dos Céus, uma vez que esse compreendia uma verdadeira transformação da ordem vigente com a supressão de todas as estruturas de poder e formas de dominação vigentes.

O confronto com as autoridades começou com a denúncia do templo (cf. Mt 21,12- 17); embora a maioria dos estudiosos intitulem esse episódio como “purificação do tempo”, preferimos usar o termo denúncia, uma vez que a atitude de Jesus em relação a essa instituição é de completa oposição, desejando, inclusive, a sua destruição (cf. Mt 24,1-2; Lc 21,6; ). Portanto, não tem sentido imaginar Jesus purificando algo que, para Ele, nem deveria mais existir. Esse episódio do templo foi o estopim para o conflito com as autoridades, e o Evangelho de hoje faz parte desse conflito.

Ao ver Jesus ensinar na área do templo, os sumos sacerdotes e anciãos lhe perguntaram com que autoridade Ele fazia aquilo (cf. 21,23). Ora, o ensinamento de Jesus divergia completamente do magistério oficial da época. Jesus não respondeu de modo afirmativo, mas também interrogando-os, partindo do exemplo de João Batista e seu batismo, deixando-os, assim, embaraçados (cf. 21,24-27). A nossa parábola de hoje está, portanto, inserida nesse confronto e, através dela, Jesus denuncia a falsa autoridade dos chefes religiosos de seu tempo, apresentando um novo caminho de relacionar-se com o Deus que é Pai, e reforçando o que já havia introduzido no discurso da montanha: “Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus.” (cf. Mt 7,21).

Como o início do texto sugere, “Que vos parece?” (em grego: Ti, de. u`mi/n dokei/È Tí dé hímen dokei?), o que vem a seguir visa reforçar algo já introduzido na discussão de Jesus com seus interlocutores, os sumos sacerdotes e anciãos do povo. Essa introdução interrogativa é uma chamada de atenção para o que vem a seguir; significa que se trata de um ensinamento de fundamental importância: Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha” (v. 28). A vinha (em grego: avmpelw/n ampelon) é uma imagem clássica na tradição bíblica para designar o povo de Deus (cf. Is Is 5,1-7), e adaptada por Jesus como imagem do Reino dos Céus (cf. Mt 20,1-16) por Ele inaugurado. Diz o texto que o pai dirigiu-se também ao outro filho e fez a mesma proposta (v. 30a), ou seja, também pediu para ir trabalhar na sua vinha.

A imagem de Deus como pai já soava como provocação aos chefes religiosos do tempo de Jesus, afinal, o Deus deles era um patrão e juiz. Essa imagem se torna ainda mais chocante quando Jesus diz que aquele pai tinha dois filhos. Ora, Deus tinha escolhido um único povo, Israel, e nada tinha a dizer aos outros povos. Portanto, comparar Deus a um pai com dois filhos tratados da mesma maneira era uma proposta absurda, conforme a imagem de Deus cultivada e transmitida pela religião oficial da época.

O pai fez a mesma proposta aos dois filhos, ou seja, convidou-os para trabalhar na vinha, e recebeu respostas diferentes. Eis a reação do primeiro destinatário da ordem/convite do pai: “Não quero’. Mas depois mudou de opinião e foi(v. 29). Aqui, é necessário fazer uma pequena correção à versão litúrgica do texto: ao invés de “mudou de opinião”, o evangelista diz, na língua original do texto, que ele “arrependeuse” (em grego: metamelhqei.j metamelteis). Em outras palavras, podemos dizer que aquele filho “converteuse e foi trabalhar na vinha”. Eis, agora, a resposta-reação do segundo filho: “Sim, Senhor, eu vou’. Mas não foi” (v. 30). Como vimos, tanto foram diferentes as respostas quanto as atitudes de cada um deles. O centro do ensinamento de Jesus com essa parábola está exatamente aqui, no contraste entre as respostas e os comportamentos dos dois filhos. Historicamente, Israel, como povo da aliança, disse sim a Deus com palavras, embora seu comportamento tenha se distanciado tanto da verdadeira vontade de Deus. Com esse contraste entre os dois filhos, Jesus provoca seus interlocutores e os convida a uma reflexão.

Como a parábola foi usada por Jesus para provocar em seus interlocutores uma reflexão, eis que Ele lhes pede um juízo, uma opinião sobre os dois filhos: “Qual dos dois fez a vontade do pai?” Os sumos sacerdotes sacerdotes e os anciãos do povo responderam: “O primeiro” (v. 31a). Os sumos sacerdotes e anciãos do povo não poderiam responder de outra maneira: de fato, quem fez a vontade do pai foi o primeiro filho, aquele que disse “não”, verbalmente, ao convite do pai, mas mudou de ideia, ou seja, converteu-se e foi trabalhar na vinha. Ao ir trabalhar, esse primeiro filho fez verdadeiramente a vontade do pai, mesmo tendo respondido negativamente, uma vez que o importante para Deus não são as palavras, mas sim as atitudes. O segundo, pelo contrário, não fez a vontade do pai porque ficou apenas no discurso, não levou a solene resposta “Sim, Senhor” para a prática.

A resposta dos interlocutores de Jesus, os sumos sacerdotes e anciãos do povo, foi uma verdadeira sentença de autocondenação. Aplicando a imagem do pai a Deus e dos dois filhos a Israel e aos pagãos, Jesus queria levá-los a conscientização das contradições da religiosidade que praticavam. E, ao recordar isso, Mateus chama a atenção da sua comunidade para também não cair nos mesmos erros da antiga religião. Por sinal, Mateus já havia introduzido esse tema no discurso da montanha: “Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus.” (cf. Mt 7,21), e em uma discussão com os escribas e fariseus, ao citar diretamente o profeta Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (cf. Mt 15,8 = Is 29,13).

Com certeza os chefes religiosos de Jerusalém já tinham percebido a complexidade da situação em que tinham se envolvido ao questionar a autoridade de Jesus. Sem dúvidas, o clima piorou ainda mais com a continuação da resposta de Jesus a eles: “Então Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (v. 31b). Dessa vez, Jesus passou dos limites, pensaram eles. Enquanto os acusava em linguagem simbólica, poderiam ignorar ou mudar o foco. Mas assim, de modo tão claro e objetivo, não era possível. Os cobradores de impostos e as prostitutas eram, de acordo com a mentalidade da época, as piores categorias de pessoas, a verdadeira escória da sociedade, e Jesus ousou dizer que elas herdariam primeiro o Reino de Deus do que as pessoas religiosas de Israel. Essa afirmação soava como absurdo para o auditório de Jesus.

A rejeição dos chefes à mensagem de Jesus é comparável a rejeição sofrida por João (v. 31). De fato, também o precursor viera “num caminho de justiça” (em grego:evno`dw/|dikaiosun,hjenhodôdikaiosines),masforarejeitadopelos conhecedores da lei e dos profetas, ou seja, pelas pessoas religiosas como os sacerdotes e anciãos, fechados ao arrependimento devido à autossuficiência de suas convicções religiosas. Já “os cobradores de impostos e as prostitutas” (v. 31b), rejeitados pela religião e abertos à conversão, sedentos de compreensão e acolhimento, acreditaram no Batista e em Jesus, tornando-se, assim, herdeiros do Reino dos Céus, a nova vinha do Pai, que é Deus. Desse modo, a máxima proverbial que concluía a parábola do domingo passado, é atualizada na parábola de hoje: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,16).

É importante que, assim como a comunidade de Mateus soube atualizar essa mensagem, também as nossas comunidades de hoje saibam. Os primeiros de sempre, transformados em últimos na dinâmica do Reino serão sempre as pessoas autossuficientes, arrogantes, conhecedoras dos mínimos detalhes das leis religiosas, como eram os sacerdotes, anciãos e escribas da época de Jesus. Hoje, embora em outras modalidades, essas pessoas continuam presentes em nossas comunidades, com a mesma autossuficência, julgando, excluindo e determinando como o outro deve agir.

É preciso identificar quem são os últimos de hoje para os reconhecermos como primeiros no Reino. Na época, Jesus identificou os cobradores de impostos e as prostitutas, exemplos máximos de perversão para a época. Hoje, certamente há uma relação muito maior de categorias de pessoas excluídas pelas religiões e comunidades eclesiais que Jesus as colocaria como primeiras no Reino dos céus. Todos os que sofrem descriminações e exclusões por quem controla e impõem as normas de comportamento: as prostitutas, a população LGBT, ex-presidiários, moradores de rua, mães solteiras, menores infratores e tantas outras categorias, estariam na lista de Jesus, precedendo aqueles que louvam com os lábios, mas pouco fazem para o Reino de fato acontecer, ou seja, não fazem a vontade do pai!