Thadeu Brandão – Violência simbólica e as representações do poder na Universidade

Em seu livro “Meditações Pascalianas”, o sociólogo francês Pierre Bourdieu revisa seu próprio corpus teorico e critica o pensamento social que é construído dentro dos muros da universidade e, incisivamente, propõe que os acadêmicos doravante pensem o mundo dentro da ordem social, participativamente, e não como observadores onipotentes.

Assim, ele procurou mostrar que as relações de força entre os agentes sociais apresentam-se sempre na forma transfigurada de relações de sentido. A violência simbólica, outro tema central da sua obra, não é considerada por ele como um puro e simples instrumento ao serviço da classe dominante, mas como algo que se exerce também através do jogo entre os agentes sociais.

Ao discutir a libido e o illusio, Bourdieu aponta que os

“agentes tiram partido das possibilidades oferecidas por um campo no intuito de exprimir e saciar suas pulsões e desejos, eventualmente sua neurose, como dizer que os campos utilizam as pulsões dos agentes constragendo-os à submissão ou à sublimação, fazendo-os se dobrar diante das estruturas e finalidades que lhes são imanentes” (p. 200).

Argumenta que o trabalho pedagógico em sua forma mais elementar se apoia na eterna busca de reconhecimento. Isto posto, a raiz antropológica da ambiguidade do capital simbólico reside na busca das satisfações do amor-próprio, da  aprovação do outro. Assim,

“o capital simbólico assegura formas de dominação, que envolvem a dependência perante  os que ele permite dominar: com efeito, ele existe apenas na e pela estima, pelo reconhecimento, pela crença, pelo crédito, pela confiança dos outros, logrando perpetuar-se apenas na medida em que consegue obter a crença em sua existência” (p. 202).

Daí que a análise da aprendizagem e da aquisição de disposições conduz a princípio da ordem política. A coerção se dá pelo corpo. A ordem social não é outra coisa que a ordem dos corpos. “Basta no essencial o hábito ao costume a à lei que a lei e o costume produzem por suas próprias experiências e persistência, a despeito de qualquer intervenção deliberada, para que se  consiga impor um reconhecimento da lei fundado no desconhecimento do arbítrio que constitui seu princípio“ (p. 204). Ou seja, se consegue uma obediência através da inculcação de disposições submissas que o Estado inculca através da ordem estabelecida (através da educação escolar).

Isso não se dá através de constrangimentos físicos ou coisa parecida. A força simbólica age sobre o corpo, e é produto da incorporação de uma estrutura social sob a forma de disposições (que chega a imitar uma naturalização). O habitus é “o verdadeiro princípio dos atos práticos de conhecimento e reconhecimento da fronteira mágica entre dominantes e dominados, atos desencadeados pela magia do poder simbólico” (p. 205).

Para Bourdieu, a violência simbólica aparece como a coerção que se instaura através da adesão onde o dominado não deixa de conceder ao dominante devido ao seu habitus, predisposições incorporadas, na medida em que os esquemas empregados para se perceber e se apreciar (ou aos outros) constituem o produto da incorporação das classificações, cujo produto é o seu ser social. Mas, ao mesmo tempo, dominados e dominantes contribuem para construir a dominação e o poder simbólico enquanto tal.

Temos um poder que se insere  no corpo dos dominados “sob a forma de esquemas de percepção e de disposições (para respeitar, admirar, amar, etc), ou seja, de crenças que tornam sensível a certas manifestações simbólicas, tais como aas representações públicas do poder” (p. 207-208). Isto surge através da domesticação do corpo, no próprio processo de socialização e de educação.

Os atos de submissão e de obediência, mesmo quando se apoiam na força, são atos de reconhecimento e de conhecimento que mobilizam estruturas cognitivas que podem ser aplicados ao entendimento da vida social (o processo que leva a uma naturalização do mundo social – que é vivida como tal e reproduzida). As disposições, produtos da incorporação das estruturas objetivas tendem a justificar esse estado de coisas.

O Estado cumpre o papel da produção e da reprodução dos instrumentos de construção da realidade social. Impõe organização, regras, incide sobre as categorias, inculca nos indivíduos através de padrões e categorias, permite a eficácia simbólica dos ritos de instituição. Tudo isso, principalmente através do controle do sistema escolar e de reprodução. Assim, “o Estado cria as condições de uma orquestração imediata dos habitus que constitui, por sua vez, o fundamento de um consenso sobre esse conjunto de evidências partilhadas, capazes de conformar o senso comum” (p. 213).

Em suma, a submissão à ordem é o produto entre as estruturas cognitivas inscritas pela história social e individual nos corpos e as estruturas objetivas onde elas se aplicam. Daí porque pode-se olhar para os produtores do poder e da violência e suas interações (analisando os espaços sociais onde se constroem as posições, o espaço das tomadas de decisão, a estrutura dos agentes, etc).

Assim, é no espaço social onde as práticas sociais e os habitus se constroem para, através deles, modelar os corpos, inculcando-lhes, por meio de condicionamentos, posições e estruturas cognitivas que lhe inserem nesse mesmo espaço. As tomadas de posição antagônicas, as visões de mundo, os sensos práticos que os agentes possuem (o “sentido de lugar”), passa pela construção de um habitus específico inserido em um espaço social.

A luta política é uma luta cognitiva (prática e teórica) pelo poder de impor a visão legítima do mundo social, ou melhor, pelo reconhecimento, acumulado sob a forma de um capital simbólico de notoriedade e respeitabilidade, que confere autoridade para impor o conhecimento legítimo no sentido do mundo social, de sua significação atual e da direção na qual ele vai e deve ir.

Daí a importância da educação nessa construção, assim como do Estado e de suas instituições, principalmente as jurídicas. No mundo social, as estratégias de conhecimento e de reconhecimento pautam as lutas simbólicas. A Universidade deve incorporar esses constitutos de luta, contra o poder operante simbolicamente e que se impõe de forma violenta.

Misoginia, racismo, homofobia são algumas das formas mais comuns da violência simbólica. Mas, não são os únicos e duvido que sejam centrais. Ao lado deles, a luta pela a inclusão é significativa e deve ser o bastião de todas e todos que fazem a Universidade. O discurso operativo de que a universidade é espaço de estudo para poucos deve ser transmutado para a inclusividade potente da mesma. Não nos espantemos quando nós professores reproduzimos a ideologia forte de meritocracia, tão construída socialmente quanto as demais ideologias acima citadas.

A meritocracia como representação e ideologia, ou mesmo como um elemento do habitus da classe média imperante nas universidades é uma das piores formas de reprodução da violência simbólica na mesma.

 

Chegou a hora de discutir esse engodo de forma séria.
Opus Cit: BOURDIEU, Pierre. Violência Simbólica e Lutas Políticas. In: Meditações Pascalianas. Tradução de Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. P. 199-233.