Thadeu Brandão – O amor e a velhice em “Memória de Minhas Putas Tristes”

Por Thadeu Brandão.

 

Gabriel Garcia Márquez, em seu imortal “Memória de Minhas Putas Tristes” (2005), nos brinda com o que eu considero o maior libelo à velhice na literatura mundial. Livro pequeno, li-o pela primeira vez sentado num ônibus que me lavava ao trabalho numa manhã de sábado há mais de uma década atrás.  Li as pouco mais de cem páginas e cerca de 50 minutos, devorando cada uma com a gula inegável que só quem tem a fome da descoberta entende. Li novamente anos depois e reli-o ano passado.

O personagem, escritor solteiro e convicto (não direi o nome dele, descubra-o caro leitor), inicia o relato com a informação, soante indecorosa para o moralismo estúpido que vivemos hoje em dia:“No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem” (p. 07). Numa idade em que a “maioria dos mortais está morta”, ele iniciaria uma nova vida.

Sendo a velhice o declínio da vida, como poderia alguém iniciar algo aos 90 anos? Esse é o maior desafio de Gabo. Mostrar que a velhice é também viva. Já o havia feito em “Amor em tempos de cólera”, mas, neste livrinho, ele se superou.

A consciência da idade chegando, a velhice, que nós, maiores de quarenta anos sabemos próxima, que traz uma dor nova a cada ano é celebrada com humor na prosa inigualável do colombiano. A tradução primorosa mantêm a riqueza da simbologia: “(…) minha crônica de aniversário não seria o mesmo e martelado lamento pelos anos idos, mas o contrário: uma glorificação da velhice. Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia” (p. 12).

A velhice acompanhada não só das dores e desconfortos, mas dos vácuos da memória e do esquecimento inevitável. Cada nova década um novo desafio, destilado com sabedoria. Isso numa era onde todos querem ser jovens e lutam para não envelhecer: “Na quinta década havia começado a imaginar o que era a velhice quando notei os primeiros ocos da memória. Revirava a casa buscando meus óculos até descobrir que os estava usando, ou entrava com eles no chuveiro, ou punha os de leitura sem tirar os de longe” (p. 13-14).

E o sexo? O leitor não se preocupe, ele é descrito como real:

“Minha idade sexual não me preocupou nunca, porque meus poderes não dependiam tanto de mim como delas, e quando querem elas sabem o como e o porquê. Hoje em dia dou risada dos rapazes de oitenta que consultam médico assustados por causa desses sobressaltos, sem saber que os noventa são piores, mas já não importam: são os riscos de estar vivo. (…) é um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais, mas rara vezes falhe para as que de verdade nos interessam” (p. 14).

A personagem, que nunca havia deitado com nenhuma mulher sem pagar-lhe o usufruto do prazer, já havia saído com mais de quinhentas mulheres (514 explica ele), até onde contou. Como é característico da obra de Marquez, um conselho se avizinha sobre as malandragens da fuleiragem: “Tinha minha ética própria. Nunca participei em farras de grupo nem em contubérnios públicos, nem compartilhei segredos nem contei uma só aventura do corpo ou da alma, pois desde jovem me dei conta de que nenhuma é impune” (p. 16).

O pedido à dona do bordel é abrupto e esperado por ela. Crime duro com pena de três décadas na Colômbia, foi resolvido com o aumento do valor do serviço. Corpo é mercadoria naquele tipo de “negócio que todo mundo conhecia mas ninguém reconhecia” (p. 28). Finalmente, o velho e a menina se encontram, ela dormindo e ele a contemplando:

“Era morena e morna. Tinha sido submetida a um regime de higiene e embelezamento que não descuidou nem os pelos incipientes de seu púbis. Haviam cacheado seus cabelos e tinha nas unhas das mãos e dos pés um esmalte natural, mas a pele cor de melaço parecia áspera e maltratada. Os seios recém-nascidos ainda pareciam de menino, mas viam-se urgidos por uma energia secreta a ponto de explodir. O melhor de seu corpo eram os pés grandes de passos sigilosos com dedos longos e sensíveis como se fossem de outras mãos. (…) nem os trapos nem as tinturas eram suficientes para dissimular seu gênio: o nariz altivo, as sobrancelhas encontradas, os lábios intensos. Pensei: Um meigo touro de briga” (p. 31-32).

O que aconteceu então? Nada além da contemplação. E da maior descoberta de um homem aos 90 anos e pela primeira vez na vida: o amor… Se as putas não lhe deram tempo para casar, a velhice o havia lançado nos jogos da sedução ao qual, imaginavam as mulheres mais novas, os velhos não participavam: “(…) um dos encantos da velhice são as provocações que as amigas jovens se permitem, achando que a gente está fora do jogo” (p. 51).

Os novos encontros entre a menina e o velho se sucedem. Ela dormindo e ele a contemplando, ate que finalmente se conhecem: “Por que você me conheceu tão velho? Respondi com a verdade: A idade não é a que a gente tem, mas a que a gente sente” (p. 67-68). O amor, que parece impossível nessa diferença abissal construída por séculos de cultura, brotava. Ele cantava, coisa que nunca havia feito na vida:

“(…) comprovávamos uma vez mais que aqueles que não cantam não podem nem imaginar o que é a felicidade de cantar. Hoje sei que não foi uma alucinação, e sim um milagre a mais do primeiro amor da minha vida aos noventa anos” (p. 69).

Ao adentrar no cabaré, o velho Lupanar, o motorista de táxi o adverte: “Cuidado, sábio, nessa casa matam gente. Respondi: Se for por amor, não importa” (p. 70).

Se o leitor não abandonou o livro (a maioria não lê devido ao título e eu li EXATAMANTE devido ao mesmo), agora nunca mais irá largá-lo:

“Me pergunto como pude sucumbir nesta vertigem perpétua que eu mesmo provocava e temia. Flutuava entre nuvens erráticas e falava sozinho diante do espelho com a vã ilusão de averiguar quem sou. Era tal meu desvario, que em uma manifestação estudantil com pedras e garrafas tive de buscar forças na fraqueza para não me colocar na frente de todos com um letreiro que consagrasse minha verdade: Estou louco de amor” (p. 75).

O amor é diferente do sexo, e o sexo é o que sobra quando não há amor: “Atropelei: O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança” (p. 79). Aos noventa anos ele compra uma bicicleta e se renova como um garoto ao descobrir que não só amava como era amado.

O amor que não é nada além de um pathos, dor que se sente e que consome, angústia eterna acompanhada de aflição, paz sem misericórdia. Sem ela, o desassossego e sensação de que a vida só vale a pena quando se ama. A dona do Lupanar o advertiu: “De verdade, terminou ela com a alma: não vá morrer sem experimentar a maravilha de trepar com amor” (p. 111).

A separação da menina (o leitor deve ler o livro para saber o porquê) o consumia. A sensação de morte o alcançava. Finalmente: “ – Ai, meu sábio triste, está bem que você esteja velho, mas não idiota – disse Rosa Cabarcas morrendo de rir. – Essa pobre criatura está zonza de amor por você” (p. 127).

Agora ele podia morrer em paz e feliz. Amando e sendo amado. Uma velhice possível em nossa síndrome eterna de Hebe? Sim, ao menos na prosa de Gabo. Inesquecível como a possibilidade de viver após o crepúsculo. Sonhar com o cair da noite e saber que a noite e o fim ainda nos reservam surpresas:

“Era enfim a vida real, com meu coração a salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos meus cem anos” (p. 127).

Amor, velhice e putas. Três temas que nossa moralidade hodierna, estúpida e vazia rejeitam. Marquez  nos traz uma pequena história, pouco mais que um conto, arrebatadora e capaz de nos fazer pensar de como nossos estereótipos embaçam nossa vista e destroem nossa alma. Um velho ama uma puta menina, que puta não foi tendo sido. Ele a amou mesmo velho. A menina o amou no mesmo sentido.

Citação

MÁRQUEZ, Gabriel García. Memória de minhas putas tristes. Tradução de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2005.