Sempre acreditei que o advento da energia elétrica e a disseminação da iluminação pública pelo interior do país tivessem posto fim às assombrações. O posteamento das ruas das cidades além de eliminar as trevas da noite com suas réstias e sombras, desvãos escuros e impenetráveis ao olhar, teria também acabado com as aparições, os vultos e bichos misteriosos que levavam medo aos cidadãos.
Digo isso porque em criança as histórias de assombração eram algo comum. Os adultos contavam entre si nas rodas de conversa e as crianças ouviam assustadas e fascinadas a um só tempo. Histórias de papafigo, bicho papão, batatão, mula-sem-cabeça, lobisomem, caiporas, almas, botijas, lugares assombrados. Cavalos que estacavam assustados nas encruzilhadas. Lembro-me de ter ouvido de um pescador na praia de Santa Rita uma história fantástica de um paquete assombrado a perseguir e estragar a pesca das embarcações. Ali, na margem do Potengi, o Pai do Mangue era descrito por pescadores como um preto enorme que uivava, virava barcos e atravessava o rio com água na cintura.
O nosso Lobisomem tinha características próprias. Era a pessoa que buscava lugar onde animais se espojavam, despia as roupas enquanto rezava um Pai Nosso às avessas e então rolava no chão como bicho. A lua cheia fazia o resto. Era algo intencional, feito por maldade ou gosto. Vez em quando pegavam algum pelos indícios: joelhos e cotovelos arranhados, palidez, estranheza de comportamento. Uma boa surra, um pouco de água benta e alguma quarentena social resolviam o problema.
A mula-sem-cabeça tinha conotações moralistas. Era a metamorfose da moça que se envolvia com padres, algo muito comum no interior. Como punição ao ato pecaminoso tornava-se besta-fera errante, perambulando pelas noites do sertão. Interessante que nada acontecia ao padre sedutor, a não ser, talvez, o encontro com a sua tenebrosa vítima, desejosa de dar sequência ao frenesi sexual. Faz lembrar Jackson do Pandeiro: “se porventura a mulher for casada/e enganar o marido a coisa é feia/ela pega dez anos de cadeia/e o conquistador não sofre nada”.
Batatão é corruptela de boitatá, cobra de fogo, no norte. Entre nós é um fogo que persegue os viajantes noturnos, manifestação de alma errante e malfazeja. Os estudiosos, no afã de tirar a graça de tudo, afirmam que não passa de fogo-fátuo, efeito da fosfina, seja lá o que isso for. Fico com a crença do homem do sertão, até porque, batatão ou fogo-fátuo, a coisa corre no encalço do vivente fujão.
Não havia caçador que entrasse na mata sem carregar fumo e cachaça para a caipora, sob pena de não matar absolutamente nada. A crina e a cauda dos cavalos amanheciam entrançadas e o assobio das encantadas ressoava forte nos ouvidos dos valentes. Terror das crianças, a caipora me foi descrita como uma criança de sete anos, nua, de longos cabelos a encobrir a nudez e uma cobra enrolada no corpo: “Sou Adelina caipora/enrolada numa cobra”, ouvi e vi em uma manifestação de Umbanda. Ah, os caminhos do sincretismo…
E as assombrações urbanas? Sei de poucos desses fatos em Natal. Gumercindo Saraiva (Lendas do Brasil) conta de uma alma aboletada no muro do Cemitério do Alecrim a assustar os padeiros que passavam: “– O senhor leva pão nesse balaio?” Fala também da aparição da Cruz do Oitizeiro, melancolicamente a pedir piedade para a alma errante.
Fama de mal-assombrada tinha a casa da viúva Machado, que de senhora rica e respeitada na cidade criou fama de papafigo que pegava meninos. Minha mãe conta – e dou fé – que em viagem junto com meu avô, hospedados em Santa Cruz do Inharé, uma mulher passou a noite sentada junto à janela, posta em sossego. Quem ficou desassossegada foi Dona Penha, no que deve ter sido a noite mais longa da vida. No outro dia a dona da pensão apenas confirmou: – É isso mesmo, desde que morreu que ela assombra as pessoas no quarto.
Minha família materna é uma fonte abundante de casos. Havia uma rede na casa dos meus avós onde só os mais corajosos deitavam por causa dos violentos sacolejos que eram dados sem razão nem origem aparente. Minhas tias eram destemidas. Gritavam para o vazio: “- Me deixem dormir, gota serena!” Quem não teve uma experiência dessas? Eu mesmo, garoto, dormi na cama junto com minha mãe na ausência de meu pai que estava em São Paulo. Acordei com o som das molas do colchão. Achando que era ela que despertava me voltei para ver uma criança com a metade do corpo enfiado dentro do mosquiteiro olhando e sorrindo para mim. Não senti medo. Tive terror. Não tive coragem sequer de cutucar minha mãe ao lado. Nem falar ou gritar. Muito menos enxugar um pingo de suor que escorreu para a ponta do nariz. No Colégio Salesiano eu ouvia dos padres estórias das visões de são João Bosco e dos santos que viam aparições a três por quatro. Não sei como eles lidavam com isso. Eu quase fiz o que Bolsonaro falou que fazia para a CPI. Literalmente.
Tenho uma saudade boa de tudo isso. Das conversas, das histórias, dos relatos. Até do medo eu sinto falta. Do arrepio na nuca. Como disse, a tecnologia acabou com os mistérios. Hoje os laboratórios e as equipes de caça-fantasmas munidas de equipamentos sofisticados estão sempre prontas para por abaixo essas crenças. Só não respondem às velhas questões da vida e da morte. Acho que vendo tudo isso, os fantasmas, discretamente, se divertem.
NATAL/RN