REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 11,1-13 – ANO C

Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é próprio do ano litúrgico C. E o texto proposto para este dia é a sequência imediata aquele do domingo passado, que correspondia ao episódio da estadia de Jesus na casa das irmãs Marta e Maria (Lc 10,38-42). A passagem lida hoje – Lc 11,1-13 – constitui-se uma verdadeira catequese sobre a oração, dentro do contexto do longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Como tem sido afirmado nos últimos domingos, é sempre oportuno recordar a importância do caminho para a dinâmicas narrativa e teológica de Lucas: não se trata de um percurso físico-geográfico, simplesmente, mas de um itinerário formativo, no qual Jesus apresenta o seu programa, com seus principais ensinamentos e as exigências básicas que o seu seguimento comporta. Na verdade, o caminho de Jesus na perspectiva de Lucas é metáfora da própria vida cristã. Logo, só pode ser cristão/cristã quem se dispõe a percorrer com ele esse caminho. E, enquanto caminha, Jesus se relaciona com Deus e com as outras pessoas: entra nas casas, responde perguntas, corrige os discípulos, faz advertências, conta histórias, participa de banquetes festivos e encontra tempo para rezar.

Se no domingo passado o evangelho evidenciava a convivência de Jesus com as pessoas durante o caminho, ao relatar sua estadia na casa das irmãs Marta e Maria, o de hoje destaca sua relação com Deus, o Pai, por meio da oração. Inclusive, convém recordar que Lucas é, por excelência, o evangelho da oração; ele faz referência a Jesus rezando/orando sete vezes, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). Obviamente, o evangelista quer mostrar que a oração foi o grande alimento de Jesus em sua vida pública. Foi pela força da oração que ele levou a cumprimento o projeto do Pai em sua vida. E o ponto alto do evangelho de hoje é a oração que Jesus ensina aos seus discípulos, preservada e transmitida pelas comunidades cristãs com o título de “Pai-nosso”. Se tem notícias de pelo menos três versões desta oração circulando nas primeiras comunidades: uma versão no Evangelho de Mateus (cf. Mt 6,9-13), outra em Lucas, contida no evangelho deste domingo, e ainda outra na Didaquê, um texto do segundo século que é considerado o primeiro catecismo do cristianismo. Das três versões, a de Lucas é a mais abreviada e, por isso, considerada a mais próxima das palavras originais de Jesus, de acordo com a maioria dos estudiosos.

O texto começa com uma introdução típica de Lucas que ajuda a perceber a ambientação e o contexto do episódio: “Jesus estava rezando num certo lugar” (v. 1a). Independentemente das circunstâncias, Jesus reservava sempre uma parte do seu tempo para a oração; era algo que fazia parte do seu cotidiano. Assim como tinha estado há pouco tempo numa casa, em diálogo claro e sincero com duas mulheres, Marta e Maria, agora ele se encontra em diálogo com Deus, o Pai. O ambiente é “um certo lugar”, provavelmente um espaço improvisado, de acordo com o contexto do caminho e das características itinerantes do seu movimento que, ao contrário do judaísmo oficial, não possuía estruturas fixas. É impressionante a sequência da informação: “Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1b). Certamente, era bonito o jeito de Jesus rezar, impressionava quem via, não pelo palavreado, mas pela intimidade com Deus que ele revelava. As entrelinhas do texto dão a entender que os discípulos estavam olhando Jesus rezar, admirados. Tanto que não ousaram interrompê-lo, mas esperaram que ele terminasse. Impressionados, tiveram vontade de fazer o mesmo. Talvez, e muito provavelmente, estavam angustiados porque conviviam com ele já há um certo tempo e ainda não tinham aprendido muita coisa, nem mesmo a rezar como ele. E, o discípulo tem o dever de tornar-se parecido com o seu mestre, de fazer tudo à sua maneira, incluindo jeito de rezar.

Todo mestre ou rabino tinha um jeito próprio de conduzir o seu grupo, com seus ensinamentos, regras e fórmulas, inclusive, de oração. Geralmente, essas orações eram síntese da espiritualidade do grupo ou movimento. Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, não estabelecendo regras e fórmulas, o que poderia deixar seus discípulos até inseguros. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver. Diante disso, seus discípulos usam o exemplo de João Batista, cujo movimento tinha características semelhantes ao de Jesus, até certo ponto, obviamente, entre os tantos existentes na época. Assim como outros mestres, João Batista tinha ensinado seus seguidores a rezar, embora não tenhamos conhecimento do seu conteúdo. Tem-se notícias de fórmulas de oração de outros movimentos e grupos contemporâneos. Tudo isso levava os discípulos de Jesus a sentirem necessidade de fórmulas também. Contudo, a particularidade do jeito de Jesus exercer sua liderança era exclusivamente pelo exemplo, pelo seu jeito de viver. Por isso, não tinha preocupação de ensinar fórmulas para serem repetidas.

Do jeito pessoal de Jesus rezar nasce a curiosidade e, da curiosidade, a necessidade nos seus discípulos. Por isso, pediram que lhes ensinasse. Ao pedido dos discípulos, Jesus responde. Mas, não dá uma fórmula, como davam os rabinos do seu tempo. Pelo contrário, dá-lhes uma “anti-fórmula”, pois as primeiras palavras da sua oração sugerem exatamente uma quebra de protocolos e paradigmas. Os judeus, ao rezar, faziam longas introduções, exaltando a grandeza de Deus, antes de fazer as suas preces; utilizavam termos como “Altíssimo, Todo-Poderoso, Onipotente, Senhor, Santo dos Santos”; esses termos ajudam a reconhecer a grandeza de Deus, mas como alguém distante, em um grau infinitamente superior e alheio à realidade das pessoas. Jesus quer abolir essa mentalidade entre os seus seguidores. Por isso, introduz a sua oração ensinando a chamar a Deus de Pai, ou seja, como uma pessoa íntima e próxima de quem o invoca. Seu jeito de rezar causa impacto, sobretudo porque ele ensina na oração a chamar a Deus de Pai. Para nós, hoje, parece não ser algo impactante. Mas, para a sua época foi revolucionário. No Antigo Testamento, Deus é chamado de Pai poucas vezes, na maioria como metáfora ou como pai apenas de Israel enquanto povo, não na oração pessoal cotidiana. Tradicionalmente, a quem os judeus chamavam de pai era Abraão. Por isso a oração de Jesus é revolucionária e, mais ainda, por ser um paradigma de relação com Deus e o próximo, muito mais do que uma fórmula.

Com o imperativo “Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome” (v. 2), Jesus quer dizer, antes de tudo, que o primeiro elemento necessário para uma oração autêntica é ter clareza do seu destinatário. É claro que é a Deus que deve ser direcionada toda oração cristã. Deus é um pai atento a todos os seus filhos e filhas que podem relacionar-se diretamente com ele, sem necessidade de intermediações. É um Deus que é, antes de tudo, um Pai! Logo, Jesus não inaugura uma nova fórmula de oração, mas propõe um novo jeito de se relacionar com Deus e com o próximo, como se verá na continuidade do texto. Dessa maneira nova de se relacionar com Deus, emerge a certeza de que ele está próximo de nós, como se fosse um amigo e, portanto, pode ser invocado a qualquer hora e em qualquer lugar. A “santificação do nome de Deus” (v. 2) e a “vinda do seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionadas, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. Reconhecer a santidade de Deus é saber que ele é Pai, é aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós. O Reino que já fora inaugurado por Jesus (cf. Lc 4,16-22), precisa ser difundido pelos discípulos até chegar a todos os lugares e épocas. A construção do Reino é, pois, a constatação se o nome de Deus está sendo santificado ou não, ou seja, se ele está sendo reconhecido como realmente é:  um Pai. Logo de início já se percebe, portanto, o quanto é comprometedora a oração ensinada por Jesus.

Na sequência da oração, Jesus vai recomendando o que é necessário pedir, ou seja, quais são as reais necessidades do ser humano. E a primeira petição corresponde à necessidade mais básica do ser humano: Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos” (v. 3). Na Palestina antiga, o pão era o principal alimento. Aqui, além do alimento concreto, significa tudo o que o que ser humano necessita para viver com dignidade, a começar pelo acesso diário às refeições. Com isso, Jesus compromete bastante os seus seguidores, associando a instauração do Reino de Deus à luta pelo pão cotidiano, em todas as mesas. Invocar o Reino é comprometer-se na luta por uma vida digna para todas as pessoas. A falta de acesso ao alimento cotidiano denuncia que o Reino ainda não foi completamente instaurado e, portanto, a necessidade de os seguidores de Jesus lutarem. Esta luta comporta um combate à cultura do acúmulo, ao egoísmo, por isso a invocação é pelo “pão de cada dia”, nem demais e nem de menos. Com isso, ele também recorda a condição existencial do ser humano: ele não pode ser autossuficiente por um dia sequer, mas em tudo depende de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino é a confiança e a solidariedade. Obviamente, Jesus alude ao antigo maná (cf. Ex 16) com essa petição. Há, aqui, um verdadeiro combate e denúncia à cultura do acúmulo, tema que será desenvolvido na sequência da viagem, principalmente com as parábolas do rico insensato (cf. 11,13-21) e do rico avarento com o pobre Lázaro (cf. 16,19-31).

A menção ao perdão não poderia faltar na oração que deve caracterizar a comunidade cristã, pois o perdão é essencial para a vivência da fraternidade. Por isso, Jesus recomenda este pedido na sua oração: “Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores” (v. 4). O pedido de perdão a Deus era comum nas orações dos diversos movimentos religiosos, daquela época e de todos os tempos. Realmente, é somente Deus quem pode perdoar pecados. Assim como o pedido do pão cotidiano, também esse visa conscientizar o ser humano de sua necessidade diante de Deus. A grande novidade apresentada por Jesus é a condição para buscar o perdão de Deus: “nós também perdoamos aos nossos devedores” (v. 4). Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais do que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo.

A última das petições da oração de Jesus é “não nos deixes cair em tentação” (v. 4). A palavra tentação (em grego:  πειρασμός – peirasmós), quando aplicada em relação aos discípulos, e aos cristãos em geral, significa desistir, abandonar. Assim, a comunidade é convidada a pedir ao Pai o dom da perseverança. Em outras palavras, é um pedido de coragem para levar adiante um projeto tão audacioso como o de Jesus. É necessário resistência para lutar pelo Reino, contentar-se apenas com o necessário para cada dia e perdoar aos devedores. Por isso, deve-se pedir constantemente para não abandonar essa proposta de vida tão revolucionária e desafiadora. Isso significa ainda que a nossa continuação no seguimento de Jesus não depende apenas da nossa força ou vontade, mas da graça de Deus, pois é Ele quem dá a força da perseverança. Na mentalidade hebraica, o filho é aquele que é parecido com o pai. Portanto, chamar a Deus de Pai era bastante comprometedor, pois exigia muitas implicações concretas. Era muito mais cômodo chamá-lo de Altíssimo, Onipotente ou Santíssimo, pois estas expressões evocam a alguém distante e inacessível, inalcançável, aquele que não está presente no cotidiano da comunidade para relacionar-se com ela. O Deus de Jesus, que é Pai, está presente. Os discípulos deveriam, assim como Jesus, viver como filhos. Diante das exigências, a tendência à desistência era muito comum. Por isso, Jesus pede que eles peçam, constantemente, a graça de não abandonarem o seu projeto.

Como explicação para o conteúdo da oração ensinada, Jesus conta duas pequenas parábolas: a do amigo importuno (vv. 5-8) e a do pai terreno (vv. 11-12). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível do que um amigo, e muito melhor do que um pai humano. Desse modo, ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais ele deixará de atender. Um amigo e um pai terreno, por melhores que sejam, tem suas limitações, mas mesmo assim não deixam de atender a outro amigo ou a um filho quando recorrem. Deus pode ser comparado a eles, mas é muito superior, não apenas em poder, mas em bondade, acima de tudo. Por isso, dá o que tem de melhor: O Espírito Santo (v. 13). Ora, o Espírito Santo é o dom de Deus, por excelência, e a prova de que ele doa o que tem de melhor.

A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial. E, pedindo o essencial, é claro que o Pai concederá, desde que em consonância com a sua vontade. E é da sua vontade que todas as pessoas tenham acesso aos bem e meios necessários para viver com dignidade e que possam todos viver como irmãos e irmãs. São estas, portanto, as causas de quem reza como Jesus ensinou, pois, mais do que uma fórmula, como já foi bastante enfatizado, o Pai-nosso é reflete um jeito de viver.

 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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