Quando colecionar também é uma arte: Acervo Isaura Amélia – Por Márcio de Lima Dantas

1.

A arte de colecionar insere-se numa linha temporal desde que a arte foi reconhecida como contraponto à vida, como algo que se bifurca em dois grandes arranjos: o indigitado valor estético e as supostas razões emocionais, tanto para quem produz como para quem aprecia. Eis que surge o ato de colecionar obras de arte.

Ainda com relação à vida, há que reconhecer a importância da arte como lugar no qual repousa uma circunferência comportadora de tudo o que não nos satisfaz, todos os dissabores, todos os embates nos quais sucumbimos como derrotados, todos os naipes de luto, tudo o que punge, tudo o que imprime cicatrizes jamais curadas. Enfim, tudo o que tacitamente sabemos, mesmo que uma parte seja afeita a negar. Mas não é porque não assumimos as vicissitudes, a instabilidade, a sempre presente impermanência que anula o lacerar os contornos da alma.

Eis o motivo pelo qual a Arte assume esse papel, não quer dizer que assume função, faz saber da inconstância da Fortuna, senhora detentora de alternância, ora exaltando o álacre sorriso nos olhos, em um apogeu de lídima felicidade, ora sucumbido o ser, numa sorte que o abate rente ao chão.

2.

Em se tratando de colecionismo há que se falar de um dos maiores acervos particulares de obras de arte do Rio Grande do Norte, a saber, o Acervo de Isaura Amélia (1947), constituído por mais de duas mil peças, amealhado ao longo de vinte e cinco anos.

Para a proprietária, o seu gosto pelas coisas emanadas do espírito, presente sempre esteve desde a mais tenra infância. Assim como uma espécie de potência buscando plasmar-se, querendo vir a ser uma forma, e essa vontade era a obra de Arte. Tanto é que suas lembranças mais remotas lança seus vetores para o que circunda o mundo da arte: visitar artistas, ateliês e exposições. Fortalecendo-se, enquanto fruidora e detentora de objetos de arte, uma alma que inquieta cerzia os hiatos havidos desde muito em lacunas posssibilitadoras de serem preenchidas pelo pathos da Arte.

De outra parte, o fato de ter sido Secretária de Cultura inúmeras vezes fortaleceu os laços com várias constelações de artistas, galerias de arte, organização de exposições. A fenda que ainda havia foi preenchida através da visita dos mais importantes museus do mundo, como o Louvre, o Hermitage ou o Prado, impondo-se uma pedagogia por meio do contemplar, ou seja, aprendendo a gramática da arte ao se ater diante das mais importantes obras feitas pelos mestres da arte.

Enfim, há que dizer que colecionar é uma atitude do Inconsciente, que parece significar uma proclamação do insatisfeito para com a vida e sua dinâmica, eivada de instabilidades, de uma sempre inconstância, na qual a fúria da vida estrutura-se em uma lógica mais de retirar do que de dar. Qualquer ser mediano, tendo vivido o suficiente para riscar o corpo e a alma, sabe desse choque impetuoso das legiões da vida. Isso mesmo, faz gorar os planos inscritos nas miríades existenciais do futuro e uma frágua acesa na inquietude no presente.

3.

Hoje em dia, aquela que foi Secretária de Cultura durante décadas, não perdeu os laços com os distritos da Arte. Apoia os Amigos da Pinacoteca, tomando à frente do Salão Dorian Gray de Arte Potiguar, Salão Cores do Interior, criação da revista eletrônica Paleta. Tendo elaborado inúmeros catálogos e revistas.

De sorte que são poucos os eventos relacionados às artes no estado sem a inscrição do seu nome, sem o anonimato da sua presença, sem a busca persistente de recursos para efetivar um evento cultural. Há que outorgar a tiara da boa vontade, do desprendimento, da que faz por um unção interna, por uma ordem emanada de dentro, e queda-se no presente, por um misto de prazer e obediência às forças nem sempre entendidas do Inconsciente. A Senhora Isaura Amélia merece isso.

4.

Com efeito, parte desse acervo, cerca de mil obras, está sendo doado à UFERSA, em regime de comodato. Vale lembrar que esse precioso acervo constituirá um Museu de Arte Mossoroense. Chantado será em um dos principais prédios da antiga ESAM. A cidade de Mossoró terá, talvez, a principal Pinacoteca do estado. Abrindo um lugar para não apenas a visitação de seu precioso acervo, mas também será um espaço para uma pedagogia da arte, tendo em vista um projeto inclusivo no qual haverá um exercício da arte enquanto forma lúdica: cursos sobre a arte, cursos voltados para crianças, visitas guiadas, enfim, o conjunto de obras como pretexto para o conhecimento da gramática da arte e seu papel no âmbito social.

5.

Vejamos como está classificado o acervo Isaura Amélia. Há que lembrar que sua organização é periodológica-cronológica. A saber, uma linha temporal no qual os estilos históricos estão contemplados e pontuam por meio de obras a duração do que ficou conhecido como estilo de época. Assim como se fosse a forma estética resultante do ser e do estar do Espírito da Época, quer dizer, a obra de arte organizando o Imaginário e tudo o que concerne de representações sociais acerca do modus vivendi de determinado período histórico.

Dito isso, vamos ao acervo Isaura Amélia, constituído por mais de duas mil peças. Citaremos inicialmente aqueles que são considerados os primeiros artistas visuais da nossa História da Arte: Raul Pedrosa (1892 – 1962) e Moura Rabelo (1895 – 1979). A Pinacoteca do Estado detém inúmeras telas deste último, demonstrando que um dos nossos primeiros pintores era um virtuose nas artes visuais. Destacamos um retrato de Augusto Severo e seu assistente, ambos haveriam de morrer no trágico acidente do dirigível Pax, em Paris. No que concerne ao Acervo Isaura Amélia, temos dois retratos feitos pelo artista: o de seu pai e outro retratando seu filho

  1. Em segundo, temos os artistas visuais de Mossoró, sendo um dos mais importantes arranjos, visto cobrir um vergado arco que cobre desde Marieta Lima e sua pintura com amplo domínio da geometria aprendida no Colégio das Freiras, dominando seus inúmeros arranjos de flores, tipos populares e um competente domínio de retratos de pessoas. Seguem seus parentes Ivan e Ivanilde, competentes tanto no retratismo quanto nos desenhos de paisagens. Temos então os que fizeram nomes no universo da arte: Varela, Boulier, Vicente Vitoriano, Ângela Almeida, Nôra Aires, Careca, Tulio Ratto, Marcelo Morais, Marcelo Amarelo, Rayron Montielly, Clarissa Torres, além de inúmeros artistas visuais não tão reconhecidos, como o escultor Escravo, por exemplo.

  1. Moderno. A arte moderna no Rio Grande do Norte inscreve-se em uma tradição que tem o II Salão de Arte Moderna (1949) como um dos seus principais eventos, tendo Newton Navarro e Dorian Gray como principais artífices. O Acervo Isaura Amélia conseguiu colecionar trabalhos de legítima qualidade de ambos, esses que despontam como os dois principais artistas visuais de nosso estado. Há exemplos de todas as fases de Dorian Gray. Temos assim o casario, as marinas, as cenas de cultura popular, os vasos nas janelas, a pesca.

  1. Presença norte-rio-grandense. O acervo possui telas de nossos principais pintores: Assis Marinho, Diniz Grilo, Carlos Sérgio Borges, Ery Medeiros, Fabiano, Fernando Gurgel, Falves Silva, Jordão, Leopoldo Nelson, João Natal, Marcelus Bob, Rossine Perez, Abraham Palatinik, Ana Antunes, Flávio Freitas, Rute Aklander, Ricardo Veriano.

  2. Presença Estrangeira. Seria uma grande lacuna se alguns artistas não se fizessem presentes, visto terem se inscrito não apenas como os primeiros retratistas das paisagens do Brasil, por que não dizer da América. Evoco a primeira exposição de Frans Post em Paris, um grande sucesso de público, pois todos queriam ver como “era a América e sua paisagem”, “como figurava o Brasil”, sua vegetação, seus animais, seus opulentos céus, cobrindo dois terços da tela. Temos Debret, Rugendas, Rachele del Nevo (Itália), Alfredo Sacco (Veneza), Salvador Dali (Espanha).

  3. Arte popular. A arte popular é definida como um amplexo que circunda uma série de conceitos capazes de conter uma grande variedade de estilos e artistas, desde os mais ingênuos tais como Maria do Santíssimo, que pintava com anilina e palitos de côco, até um pintor de extrema elaboração como um Fé Córdula. Percebe-se a dificuldade de deter uma só categoria para classificá-la e outorgar uma variedade de substantivos capazes de nominá-la. Talvez o melhor seja mesmo Arte Popular. Temos no Acervo: Aécio Emerenciano, Arruda Salles, Aldo Rodrigues, Dimas Ferreira, Edilson Araújo, Enoch Domingos, Fé Córdula, Iran, Jordão, Mocó.

  1. Presença do artista fora do seu âmbito de principal atividade

Nessa última categorização arrolamos um conjunto de trabalhos que não dizem respeito ao que alguns artistas se fizeram conhecidos, como, por exemplo, o fato de Cecília Meireles ter sido a nossa maior poeta mulher, malgrado isso, também foi uma hábil desenhista, sempre vinculando seus trabalhos ao que discorria acerca de determinado tema que seria uma série.

Temos uma plêiade de artistas visuais de grande qualidade estética, como as sombrias crianças de Jãnio Quadros, as clara paisagens de Chico Anysio, os esguios e singulares desenhos de Carybé, que ao retratar personagens do Nordeste, elevo-os à categoria do universal, igual Aldemir Martins, com seus gatos coloridos, elevando-os a uma variação sobre o mesmo tema. Ainda tem mais, só para fazer citar: Carlos Lacerda, Chico Aynisio, Ariano Suassuna, Francisco Cuoco, Gilberte Freire, Gilvan Bezerril, Helmut (carteiro de Câmara cascudo), Heitor dos Prazeres, Menotti Del Piccia, Nair de Tefé, D. Carlos.

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