Por que não faz sentido celebrar “placar” de curados da covid

Ainda é cedo para cravar, mas estudos já apontam que até 30% dos pacientes ficam com sequelas depois de uma infecção pelo coronavírus. Para especialistas, sistema de saúde terá desafio inédito pela frente.

A questão já havia vindo à tona no ano passado, com o Ministério da Saúde — e muitos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro — enaltecendo uma obviedade: que o número de curados de covid-19 é maior do que o número de mortos pela doença. A CPI da Pandemia escancarou essa questão, com governistas exibindo plaquetinhas com o saldo total dos considerados recuperados, enquanto parlamentares da oposição costumam mostrar a quantidade de mortos.

Atualmente, de acordo com dados oficiais, o Brasil se aproxima dos 550 mil mortos em decorrência da epidemia, enquanto curados ultrapassam a marca dos 18 milhões. Em dois momentos recentes, o debate ganhou contornos midiáticos. Em depoimento prestado à CPI, a microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência, atentou para o fato de que celebrar os curados é lembrar de uma doença que traz “dor, sofrimento e sequelas”.

Na mesma toada, o epidemiologista Pedro Hallal, pesquisador na Universidade Federal de Pelotas, afirmou à CPI que exaltar o número total de recuperados seria algo semelhante a comemorar o gol da seleção brasileira no fatídico jogo em que o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha, na Copa de 2014.

“O intuito do meu comentário é [frisar] o fato de que existir muitos recuperados é consequência de ter existido muita gente infectada, o que já é má notícia por si só”, comenta Hallal à DW Brasil.

Também à comissão parlamentar, a médica Nise Yamaguchi, que ficou conhecida por defender tratamentos sem comprovação científica contra a doença, exaltou que o Brasil “é um dos países que têm mais curados no mundo”.

“Naturalmente é muito importante ter esse dado de recuperados, monitorá-lo, até para futuras análises se essas pessoas apresentam algum tipo de sequela após a infecção aguda gerada pelo [coronavírus] Sars-Cov-2”, diz a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19.

“No entanto, para acompanhar e entender o andamento da pandemia, outros dados como a taxa de crescimento de casos e óbitos diários são mais informativos. Além disso, se temos um grande número de recuperados, é porque tivemos um grande número de pessoas infectadas. E com um grande número de pessoas infectadas, infelizmente vemos também um número intolerável e exacerbado de óbitos pela doença.”

Sequelas em estudo

Hallal ressalta que estudos já indicam que muitos dos sobreviventes de covid-19 “vão ter sintomas de longa duração persistentes, alguns até com sequelas mais graves”. “Esse é um motivo pelo qual comemorar o número de recuperados não faz sentido algum”, afirma.

Mas, afinal, o que é estar curado dessa doença ainda tão desconhecida? Pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a biomédica Karina Possa Abrahão ressalta que “a ciência ainda está descobrindo os desdobramentos” da covid-19.

“Curar é uma palavra filosoficamente debatida. O que é realmente curar?”, reflete. “Se cura é o dia em que não existe mais o vírus Sars-Cov-2 no corpo do indivíduo, podemos dizer que a pessoa está curada em três semanas, embora haja relatos de infecção persistente. Então é um período curto, mas pode ser que a gente venha a entender que a cura seria a cura das sequelas, os danos residuais que afetam o organismo mesmo depois que o vírus foi eliminado pelo corpo.”

E é aí que está o xis da questão. Ainda não se sabe com exatidão qual o percentual dos que apresentam problemas a médio e longo prazo, inclusive por se tratar de uma doença nova. Em março, a revista científica Nature Medicine trouxe uma compilação de dados apontando que o percentual de pacientes com sequelas pós-covid gira em torno de 10% a 30%.

O estudo cita fadiga, dor toráxica, dificuldades respiratórias, distúrbios cognitivos e dores nas articulações e monitorou casos a partir de três semanas após o diagnóstico de covid-19. Parte dos avaliados apresentou essas sequelas de 4 a 12 semanas depois do diagnóstico; e parte seguiu com elas após as 12 semanas.

Especialistas frisam, contudo, que é preciso cautela ao analisar quaisquer estudos sobre o tema no momento, pelo fato de que em geral o acompanhamento só vem sendo feito com pacientes que chegaram a ser hospitalizados. Ainda não dá para mensurar o impacto futuro da doença naqueles que a desenvolveram de forma leve — e ficaram em casa — ou mesmo nos assintomáticos.

Pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a fisioterapeuta Mirelle Saes alerta que o sistema de saúde precisa se preparar para o período pós-epidêmico levando em conta aqueles que seguirão precisando de tratamentos.

“Ainda não se tem conhecimento do tempo de persistência dos sintomas residuais da doença, nem de suas complicações a longo prazo. Algumas pesquisas, que avaliaram a presença de sintomas após um ano de infecção, identificaram sintomas persistentes em até 50% dos investigados”, afirma ela, citando que estudos preliminares apontam que 10% daqueles que ficam com sequelas acabam morrendo pelo agravamento do quadro.

Saes diz que já é possível considerar que a covid se apresenta em duas formas: a aguda e a crônica. “Ainda se tem pouco conhecimento sobre a covid longa, a crônica, mas se acredita que seja uma doença multissistêmica, que ocorre após o período de infecção, que pode ser leve ou grave”, diz. “Frente a isso, o sistema de saúde deve adotar medidas considerando que o paciente recuperado da infecção ainda pode apresentar a covid em sua forma crônica, com duração longa e incerta, e que exige cuidados contínuos e qualificados.”

“Tem uma bomba-relógio para estourar”

De fadiga a danos cardíacos, passando por problemas respiratórios, perda de olfato e anormalidades renais e gastrointestinais, são muito variados os quadros que têm surgido no pós-covid. Aqueles que passam um tempo intubados também apresentam dificuldades motoras.

“E já sabemos que em torno de 30% dos casos com sintomas acabam desenvolvendo alguma sequela neurológica por meses, como distúrbios do sono, dores de cabeça, problemas de memória, ansiedade, depressão e dificuldade de concentração”, pontua Abrahão. “Há estudos preliminares, ainda não publicados, que mostram que indivíduos que tiveram covid aumentam a expressão de marcadores de prognóstico para o desenvolvimento de doenças como Parkinson e Alzheimer. Precisamos ficar atentos para o futuro.”

Diversas iniciativas estão buscando compreender melhor essa situação. É o caso do Estudo Coalização Covid-19 Brasil, uma parceria entre hospitais e o Ministério da Saúde que tem monitorado as sequelas nos que foram ali hospitalizados. A pesquisadora Saes participa de um projeto chamado Sulcovid, que deve acompanhar 4 mil indivíduos pós-infecção — atualmente, estão na primeira etapa, em que os pacientes contraíram o vírus de três a seis meses atrás. Mas a ideia é repetir as entrevistas com 12 e 18 meses.

“Se considerarmos que 18 milhões de pessoas estão livres do vírus [no Brasil], consideradas curadas da fase aguda, e que destes, estima-se que pelo menos 30% apresentam sequelas, estamos falando de 5,4 milhões de pessoas com sintomas residuais da doença”, diz a pesquisadora Saes. “Possivelmente, a quantidade é ainda maior, visto que casos leves da doença são subnotificados. O SUS precisará se organizar para acolher essa nova demanda.”

“A gente ainda não conhece essa doença por completo”, enfatiza Abrahão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) vem demonstrando preocupação com as sequelas da covid-19 desde pelo menos agosto do ano passado.

Abrahão prevê que o mundo sofrerá uma “segunda pandemia” no rescaldo da covid-19. “Vai ser a das doenças mentais, decorrentes não só das sequelas da covid, mas também do período de isolamento social, distanciamento e da crise econômica. Tem uma bomba-relógio para estourar em breve”, acredita ela.

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