Pílulas para o Silêncio (PARTE CCXXXVI)

Clauder Arcanjo

PÍLULAS PARA O SILÊNCIO
(PARTE CCXXXVI)

Clauder Arcanjo*

Reescrevendo o vivido

Hoje em dia, o melhor é calar. Na ausência, os sentimentos dos que protestam amizade se modificam ou até viram fumaça.
(Francisco J.C. Dantas, em Uma jornada como tantas)

Proprietário das terras das várzeas de Licânia, Adroaldo Campolino se considerava, também, dono do coração de Isaurinha. Engano mais torto do que a sua boca retorcida.

Bastou Cremildo Santarrana arrear seus pertences por aquelas bandas, e todos comentavam que o coração de Isaurinha já tinha dono certo.

Adroaldo Campolino não deu a causa como perdida. Como sabia do interesse de seu Gerôncio Ramalhete, pai da bela Isaurinha, pelos hectares colados à cabeceira do Riacho das Negras, visitou-o, arrotando desapego:

— As terras das cabeceiras das Negras podem ser suas, senhor Ramalhete.

Isaurinha, percebendo o bote de Adroaldo, cuidou de advertir o seu bom pai:

— Pergunte a ele, paizinho, em troca de quê?

Campolino esticou os beiços na direção de Isaurinha, que devolveu o ataque com um muxoxo, seguido de uma forte rabiçaca.

— Obrigado, senhor Santarrana, mas já tenho alqueires demais.

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Aldemar Celulino casou-se e, poucos meses depois, a fim de ordenar os pedidos da esposa Albertina, resolveu exigir-lhe tudo por escrito.

— Aldemar, a despensa está vazia! Precisamos ir ao mercado — reclamou Albertina.

— Mostre-me o consumo da semana, o estoque atual de cada alimento, bem como a previsão de saída dos itens sugeridos na quinzena que entra — devolveu Aldemar, professoral.

Como Albertina não cedia à gerência burocrática do esposo, a relação caminhava célere para uma ruptura.

Certa noite Celulino se achegou da companheira e fungou-lhe carícias ao pé do ouvido. Albertina levantou-se e ordenou:

— Envie-me um ofício, assinado e com firma registrada, se quiser fazer amor comigo. Não se esqueça de anexar a tabela de coito dos últimos meses, seu Aldemar, comprovando-me a necessidade de termos, ou não, mais uma noite íntima.

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Pensava fumaças. Disso todos tinham certeza.

Quando, nos fins d’água, ele decidiu juntar dinheiro para comprar as terras de Aparício Gambetta, a poupança das filhas e da esposa foi consumida depressa nos festejos antecipados do negócio. Noites a fio, regadas a bebida farta, sem falar na extravagância dos charutos cubanos.

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Quem sobe em árvore alta e não enxerga além do horizonte é porque nasceu para viver entre cardeiros.

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Sandrão Biquara gingava tão bem no terreiro, fogoso e arteiro como poucos, que, na capoeira, fez-se logo mestre venerado.

Certa noite assanhou-se ao ver os olhos verdes de Rosinha, filha única do Bastião Pedragrande. Biquara, apesar do alerta dos amigos, passou a noite lhe fazendo a corte.

— Rosinha não é para o seu bico, não! — advertiram-no.
Sandrão girou sobre o corpo, em forma de estrela, a cuspir brabeza:

— E quem pode com este Biquara, minha gente?!

Na manhã seguinte foi posto ao chão, apesar de toda a sua exímia arte, por um tiro certeiro do bacamarte do bravo Pedragrande.

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Vi

(Quadro “Ponte sobre uma lagoa de lírios de água”, de Claude Monet)
via o mundo pelas narrativas dos livros. Jovem, julgava os atos do seu velho pai como coisas oriundas da mente de Dom Quixote; na mocidade, a esposa fora escolhida fugindo dos riscos de Bovary, e seus filhos educados segundo as máximas de Sun Tzu.

Antes de se entregar ao barqueiro Caronte, ele teve profundo receio do Inferno de Dante.

Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
(Manoel de Barros, em “Os girassóis de Van Gogh”)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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