PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXXV) – Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Quando o silêncio fala mais

A Ronda Noturna. Rembrandt. 

 

Há sempre uma noite terrível para quem se despede

do esquecimento. Para quem sai,

ainda louco de sono, do meio

de silêncio. Uma noite

ingênua para quem canta.

Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou

que varre as pedras da cabeça.

Que mexe na língua a cinza desprendida.

(Herberto Helder, em Lugar)

 

Delpídio Perzollato decidira abrir mão do passado. A terra natal, o êxodo por terras estrangeiras, o dialeto do seu povo… tudo seria abandonado, esquecido, soterrado de vez.

Certa manhã Perzollato acordou e caminhou ao redor da casa. Dizem alguns que, “louco de sono”, nada respondia.

— Seu Delpídio, aonde o senhor vai?

— Senhor Perzollato, algo o aflige? Não seria melhor entrar?

Silêncio.

A tarde chegou, com seu vento assanhado e rubro a varrer as calçadas.

Delpídio, como se salvo de um pesadelo terrível, passou a dançar e cantar numa língua desconhecida, apenas se fazendo entender pelas risadas e pelas lágrimas inconfundíveis.

 

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Pôs o pé na calçada e inspecionou o entorno. As casas, os muros, as ruas, as árvores.

Caminhou algumas quadras: outras casas, outros muros, com suas ruas e árvores.

Espichou o passo e, daí a pouco, entrava em novo bairro: casas, muros, ruas, árvores…

Decidiu voltar, satisfeito com o que colhera.

Sentou-se à escrivaninha e começou a escrever; fabulando, numa avalanche criativa, tudo aquilo que pessoalmente presenciara.

 

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Lígia Voltívia era mulher de hábitos estranhos.

Seguidas vezes Tomás Perpétuo seguira-a até a subestação da cidade. Lá chegando, ela entrava, sumia por entre os transformadores e, horas depois, saía com os cabelos revoltos, os olhos acesos e a pele como se chamuscada.

Num crepúsculo Tomás Perpétuo resolveu esperá-la na saída da subestação:

— Um beijo, minha querida Lígia. E, prometo, desta boca não sairá uma palavra.

Assustada, Lígia beijou-o sofregamente. E Perpétuo, coitado, morreu eletrocutado.

 

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Cinzas cobriam o céu de Licânia.

Alguns atribuíram o fato às queimadas.

— Ou protegemos as nossas florestas ou seremos dizimados! — alertavam os verdes.

Outros ligavam tal fenômeno à industrialização exacerbada.

— Se não contermos agora a sede de lucros dos insaciáveis capitalistas licanienses, daremos adeus ao futuro das novas gerações — propagavam os vermelhos.

De repente alguém gritou:

— Fogo na biblioteca municipal!

E o João Américo, que a tudo assistia, concluiu:

— Nunca tivemos florestas, muito menos indústrias. Onde estarão os albinos, defensores da educação?

 

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Como posso gritar, se a língua não sabe expressar o que pressinto?

Como posso calar, se a angústia me agride, me espeta o instinto?

E como posso confiar no verbo, se o que expresso brota do intuitivo?

 

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Companheiro Acácio me confidenciou que a sua geração fora a dos porras-loucas. Mas quando lhe indaguei a respeito da atual, ele silenciou, profundissimamente.

 

E falo após, mas não por minha voz,

como o silêncio é feito eterno após,

numa palavra em paz, sem qualquer som.

(Nauro Machado, em O cirurgião de Lázaro).

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