PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXXIV) – Clauder Arcanjo

Foto: “Paisagem”, de Marcelo Visentin. @photomvisentin

Notas de um agosto sem gosto

 

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo

Quero apenas contar-te a minha ternura

(Manuel Bandeira, em “O impossível carinho”)

 

Donato Carpetta fechou o diário de agosto com uma nota de desgosto. Guerra, morte para contar e negar, intrigas palacianas, queimadas, clima seco, crise de energia, exilados no próprio país, homicídios em plena luz do dia…

Donato, então, guardou o seu diário. Pouco depois levantou-se, abriu a janela e deu com o sol a brilhar no céu azul de Licânia. Tomado por um gosto poético, retornou à escrivaninha e escreveu um poema para o futuro: lírico e romântico. Ao reler as estrofes, Carpetta escondeu o caderno no fundo da gaveta, com vergonha de ser piegas em meio a tanto desgosto.

 

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Pistácio Quintero dobrava as contas, incluía compras inexistentes, arredondava para cima as somas das semanas no apontamento dos clientes. Quintero não se sentia mal com essas práticas porque, todo domingo, deixava uns trocos durante o ofertório na Matriz. Sem falar que, quando lhe solicitavam doação para a manutenção do Lar dos Idosos, prontamente atendia-os com três cestas básicas: uma ia para a conta da prefeitura, outra para a de Dona Maria, mulher caridosa, e a terceira para o caderno do ranzinza do Bastião. “Sou um instrumento a serviço da caridade, aprendi há tempo”, regozijava-se, levando a mão ao peito, contrito.

 

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Leomar Santiago assistia às partidas de futebol na tevê, chutando as pernas de Constantina. “Não foi falta, seu juiz!”, esbravejava, aos chutes.

Mês passado Santiago resolveu fazer a assinatura de um canal de luta livre. No dia seguinte Constantina entrou com o pedido de divórcio. “Em caráter irrevogável”.

 

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Quando percebeu que a Academia lhe daria o tão sonhado status de intelectual, Felipe da Silva Leôncio tomou algumas decisões. Em primeiro lugar, passou a assinar como Phillipe Léon. Em seguida contratou um latinista aposentado para ser o seu “ghost-writer”. Mês passado coligiu seus textos, publicados na imprensa, num tomo de luxo: em capa dura, papel de linho e marcador de fitilho. Na noite de autógrafos vestiu-se como o mais humilde escrevinhador da província, rasgando elogios a todos os imortais presentes.

Hoje, fumando um cubano, aguarda o anúncio da sua eleição a uma vaga na Casa das Letras.

— Após a cerimônia de posse, anunciarei a minha aposentadoria. Será um gesto de profunda humildade minha!

 

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Tão logo subiu no alto do Serrote da Rola, ele correu os olhos pelas cercanias de Licânia. O caminho do rio, o verde das carnaubeiras, as vazantes… Precisava daquela visão para se inspirar para a sua próxima noveleta.

Ao descer, mal entrou na cidade, foi recebido, em festa, pelo Batista do Zé Aguiar:

— Tenho novidades, caro escritor.

E puxou-o para o banco da praça, vomitando-lhe histórias maravilhosas e fantásticas ao pé do ouvido.

 

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Quem se diz detentor de ótima formação, acredite, ainda não se formou o suficiente para a vida.

 

Formação é aquilo que a maioria recebe, muitos passam adiante e poucos possuem.

(Karl Kraus, em Aforismos)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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