PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXXIII) – Clauder Arcanjo

Foto: Girassol urbano. Marcelo Visentin. Instagram @photomvisentin

 

 

 

 

Resistir para persistir

 

Isso é história e, no entanto, quase tudo o que tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malversar em palavras.

(Julián Fuks, em A resistência)

 

Lácio de Vergara carregava no bisaco da memória um punhado de perdas: a mãe, no terceiro parto, apartara-se da luz dos dias; o pai, o cólera antecipara-lhe a ida ao campo-santo meses depois; o irmão mais velho, a bandidagem o arregimentara para, na seca seguinte, devolver seu corpo crivado de balas, sendo enterrado às escondidas como indigente.

Hoje, Lácio tenta se livrar do infausto bisaco. Ao largá-lo no redemoinho do rio Acaraú, foi-lhe devolvido na curva seguinte, ainda mais pesado; pois, desta feita, nele se aboletara os olhos gris de Luíza D’Ávila. Estes atingiram-no na altura do peito.

 

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Lombardo Tricanilho louvava quem chegasse ao poder, não se importando com o partido ou as propostas do governo de plantão. Quando os partidários da direita instalaram o regime de força e exclusão, ele correu às praças de Licânia, defendendo a prática da teoria da seleção natural no poder executivo:

— Os fortes resistirão; aos fracos, a mera dádiva do esquecimento.

Ano último Tricanilho ouviu, noite avançada, alguém bater-lhe à porta:

— Abra! Polícia! Mandado de prisão.

— Do que estou sendo acusado? — indagou.

O investigador, de terno e gravata, ajustou a voz para responder-lhe:

— Denúncia anônima. Foste incriminado em dois artigos da Lei de Segurança Nacional.

— Posso saber em quais artigos da Lei? — perguntou, enquanto era algemado.

— Não. Isso é uma questão de segurança nacional — ouviu como resposta, antes de ser fortemente arremessado no camburão.

— Rezemos pelos fortes, pois os fracos serão exaltados — exortou um dos vizinhos de Lombardo, ao presenciar a seletiva ação policial.

 

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Tomé Pistola lia os clássicos com avidez, mas com desatenção. Ao redigir, revelava-se um inimigo da boa prosa. Engolia os pronomes, massacrava a conjugação dos verbos, perdia-se na relva espinhenta dos adjetivos, sem falar no mau jeito quando do recurso às metáforas e aos silogismos.

Certo final de tarde, apaixonado, Pistola resolveu escrever uma carta à amada. A missiva, porém, foi interceptada pelo pai da pretendente, professor aposentado de língua portuguesa. Este a leu com espanto e indignação.

Antes de passá-la às mãos da filha, admoestou-a:

— Nunca me vi diante de golpes tão duros no corpo e na alma de nosso idioma pátrio.

 

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Ponderou, avaliou e… desistiu.

Quando soube no dia seguinte que tamanha cautela resultara num desastre, dirigiu-se ao seu mestre, esbravejando:

— Quem pondera demais, seu Aderbal Vilarinho, dá com os burros na pobreza!

 

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No princípio da manhã, reunia as forças para a luta. À tarde, cansado de arregimentá-las, descansava profundamente. Ao final da noite, ao verificar o balanço pífio do realizado, concluía:

— Devagar com o andor. Amanhã terei que ter mais comedimento.

 

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Nunca nos entreguemos ao labor de resistir contra os novos defensores da esperança e da utopia. É sempre louvável perder para aqueles que carregaram a renovada bandeira da quimera.

 

Os únicos clássicos que ainda lemos não são aqueles que nos dizem as coisas mais verdadeiras, mas aqueles cuja linguagem guardou a marca de sua identidade.

(Jean Guitton, em O trabalho intelectual)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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