PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXXII) – Clauder Arcanjo

Foto: Fogão na roça. Marcelo Visentin. Instagram @photomvisentin.

Perdoa-me por te elogiar

 

Quem ostenta a própria inteligência é geralmente um estúpido.

(Norberto Bobbio, em Elogio da serenidade: e outros escritos morais)

 

Dondinho Vilamatta pediu a palavra, se antecipando ao orador principal, e desfiou frente aos presentes um rosário de elogios ao Demóstenes da noite. Não poupou adjetivos, intercalados com os aplausos da plateia, boquiaberta com tão augusta biografia.

Uma hora depois o orador principal subiu ao púlpito; ajustou a altura do microfone, passou os olhos sobre a multidão expectante e… nada lhe saiu da garganta seca, como se as cordas vocais estivessem atadas pela cordoalha de exageros que Vilamatta lhe despejara.

 

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Monarquinho Dândi só saía às ruas após a meia-noite. Entrava banhado e perfumado nos ambientes, enquanto a maioria já se lambuzara com a pinga e o tira-gosto ordinários. Não era raro ele emitir uma opinião sempre tida por mais ponderada, e em tom suave, enquanto a maior parte dos presentes queria opinar com a força dos pulmões e não com a razoabilidade dos argumentos.

E todos se calavam na alta madrugada, a julgarem Monarquinho um dos últimos remanescentes da aristocracia portuguesa que aqui aportara no reinado longínquo.

Certo dia Batista dos Medradas perdeu o horário, pois dormira após o jantar. Ao chegar à mesa em que Dândi reinava, Batista percebeu que, em província de cachaceiros, qualquer medíocre pousa de soberano.

 

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Nascido em terras distantes, adotado por mulher de pulso e de posses, educado para impor o tacão do mando, em pouco tempo Dalbuquerque Conrado era saudado como um legítimo filho da “mais tradicional família de Licânia”.

 

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Quando leu Marx, capitalizou-se. Ao tomar ciência dos ensinamentos dos franciscanos, afastou-se de todos os pobres de espírito. Ao se deparar com a lógica da mão invisível do mercado, defendeu o socialismo a ferro e fogo.

Semana passada a família, ao ter notícia do seu falecimento, ordenou a cremação imediata do corpo, sendo as cinzas jogadas ao vento.

— Respeitemos a vontade de quem, na vida, sempre optou pela contradição.

Em testamento, souberam, ele deixara escrito que queria ser enterrado no jazigo da família, no campo-santo de Licânia.

 

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Tentou prender o amanhecer nos olhos dela, colheu tão somente a nuvem pesada da saudade. Fez um esforço hercúleo para sincronizar o seu passo na calçada em frente à sua, e… deu uma topada da porra no degrau que ela se esqueceu de descer.

— Não se tem direito nem mais a um amor romântico, meu Deus! — esbravejou, com o dedão do pé direito a latejar.

 

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Toda tarde Sandoval Contreras subia no tamarineiro da avenida São João, e esperava o naufrágio do dia.

— Desça daí, seu abestalhado! — alertava-o Expedito Cosme.

— A noite precisa ser saudada do alto, amigo Expedito, acredite.

Mês passado, quando uma chuva torrencial banhou Licânia, ninguém se lembrou do Contreras.

Dias depois Sandoval Contreras foi visto dando entrada no hospital, vítima de uma forte pneumonia.

Toda tarde o enfermeiro Paulo Bodô aplica-lhe uma injeção de Benzetacil. É o dolorido naufrágio do seu paciente dia.

 

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Nunca se esquecera do conselho de seu pai: “Durma em pé quando os outros lhe falarem em partir bem tarde; os sacripantas adoram deixar-nos para trás, fingindo-se de dorminhocos”.

 

Corremos sem nos preocupar para o precipício, quando colocamos algo frente a nós, que nos impeça de vê-lo.

(Pascal, em Pensamentos)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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