PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXXI) – Clauder Arcanjo

Foto: “Espera canina”, de Marcelo Visentin.

Apologia desmesurada de um sereno provinciano

 

Fica sereno, num sorriso justo,

enquanto tudo em derredor oscila.

(Cruz e Sousa, em “Sorriso interior”)

 

Godofredo Pôncio media os dias pela desmesura do riso e pela força dos sonhos. Incomodava-o sobremaneira a contenção dos pragmáticos, o passo contado dos precavidos, a prédica enfadonha dos cidadãos entregues à memória de ontem e ao futuro que a Deus, e nunca a ele, pertence.

E, assim — nele habitava o quixotesco e a galhofa —, Godofredo saía pelas ruas a espalhar seu sorriso e a debochar da cara amarrada dos homens sérios. Ao encontrar uma criança, ele parava e recolhia o aprendizado; sabia-o trigo da colheita dos puros.

 

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Vestida de azul, Donizinha caminhou com seu sorriso anil na tarde sem brilho. De tanto saltitar e florir, Donizinha transformou em índigo o que se apresentava, até há pouco, terrivelmente incolor.

E a tarde se entregou ao sublime encantamento.

 

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Ao escrever contos, Delcídio Sampaio catava as cenas nos detalhes necessários, as personagens a se moverem rápidas e precisas em direção ao desfecho da história. Sem perda de tempo, sem frouxidão no enredo.

Hoje Delcídio, ao se ver navegante do oceano da fabulação do romance, defronta-se com a amplidão do cenário. De repente as personagens fogem da sua pena e caminham, num quê de revolta e volúpia, na amplidão da narrativa.

— Voltem aqui!

Ninguém o escuta. Só ao entender e aceitar tamanha rebeldia, Delcídio romanceia, entregando-se aos ditames da prosa.

 

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Quando Pantico Conceição soube que Dulcinéia del Toboso, tantas vezes referida e aclamada em Dom Quixote, tinha melhor mão para salgar porcos do que qualquer outra mulher de Mancha, deixou de ser tão exigente quanto aos dotes da princesa de Licânia que procurava para dividir com ele o destino errante.

 

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Cocildo perdia-se tanto na confusão dos sonhos a ponto de acordar ainda abraçado com as imagens que tecera ao longo da madrugada:

— Dá-me teus lábios carnudos e teus braços quentes, princesa da minha rua!

— Dá-te respeito, seu filho de uma égua! — bradava dona Mariquita, de vassoura em punho, ao ver Cocildo dela se aproximar com a libido assanhada.

 

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Ao perceber a entrada em sua casa do cobrador da dívida, Faustinho Juma passou a recitar:

— “Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.”

O cobrador sacou da promissória e cantarolou:

— “Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor”.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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