PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXX) – Clauder Arcanjo

Foto: “Rã”, de Marcelo Visentin.

Fundamentos apócrifos dos desconfiados

 

Pela longanimidade se persuade o príncipe, e a língua branda amolece até os ossos.

(Bíblia, Provérbios 25:15)

 

Quando a lua surgia, ensimesmado ele achava que era tão somente mais uma traquinagem do sol. Logo, logo — nele havia a plena certeza — ele retiraria o véu de disfarce da noite e voltaria a imperar altaneiro sob aquele chão de condenados, com o seu brilho de rei dos astros.

No entanto quando Esmeraldina se aproximou dele ao cair da tarde, revelando-lhe sua cândida paixão, ele sentiu que era o luar que surgia no torvelinho dos olhos dela. Lua crescente para o seu riso, outrora desconfiado.

 

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Na igreja, Alcebíades sentava-se no banco da frente, apenas para desconfiar das prédicas do velho pároco. Tal qual um Tomé de Licânia, acompanhava todas as leituras na Vulgata, com o intuito de flagrar algum deslize cometido na condução da missa dominical.

Certa manhã de domingo deram pela falta de Alcebíades na Casa de Cristo. O padre rezou a missa com uma exultação nunca vista. Enquanto o sacristão escondia o seu largo contentamento, pois sabia que o Tomé licaniense estava a conhecer os pecados da carne na cama ardente da cabocla Dionísia, “pia dama” que ele lhe apresentara na noite de sábado.

 

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Cândido Altivo não jogava no bicho, pois desconfiava da lisura dos bicheiros. Não apostava nas corridas dos cavalos, melindrado com a postura dos cavaleiros. Não se confessava com o padre, pois suspeitava da santidade do representante de Cristo.

— Somos melhores quando desconfiamos. A desconfiança é prima-irmã da sapiência! — professava Cândido Altivo.

 

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Resolveu escrever seu diário de apócrifo desconfiado. Não passou das primeiras linhas. O que ele escrevia de dia, ao reler, antes de dormir, punha abaixo com a ira de um incomodado.

— Se não nascer com ares de clássico, abandonarei minhas memórias ao oblívio. E tenho dito. Melhor, nada escrito!

No dia seguinte, o riscar e apagar novamente consumia-o. Mas, infelizmente, em vão.

E, assim, suas memórias morreram apócrifas, e inéditas.

 

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Era tão desconfiado de tudo que, ao caminhar à luz do dia, vigiava os passos da própria sombra.

— Não te cansas de me seguir? — indagava.

 

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Quando ele morreu, sepultaram-no dentro de um caixão de aço selado, com receio da sua possível ressureição.

— Senhor, tenha-o, para todo o sempre, na Casa dos Mortos. Amém! — oraram aos Céus, antes de encomendarem o seu corpo ao mais profundo barro.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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