PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXVIII) – Clauder Arcanjo

Flor do campo, de Marcelo Visentin.

Apontamentos ocasionais

 

Todo trabalho criativo necessita do olhar da criança. Quando você abandona a criança que está em seu interior, o pensamento se torna um hábito e se afasta imperceptivelmente do espanto e da pureza do primeiro olhar. Com isso, o trabalho criativo se enfraquece.

(Aharon Appelfeld em Meu pai, minha mãe)

 

No domingo, a página aberta e o silêncio na varanda. Corri os olhos nas rosas do jardim, mexi nas gavetas antigas, apurei os ouvidos para colher o barulho do mundo… nada me surgia, a criação se acomodara.

Abro, então, a porta da rua, e a cidade se cobria de um vazio incomum. Os beirais sem o chafurdo dos pardais, as praças sem os gritos da meninada, os bancos sem a postura cabisbaixa dos velhos, as janelas sem as costumeiras espiãs da vida alheia.

Ao retornar, rasgo a folha vazia posta sobre a escrivaninha, e me lastimo pelo ofício que escolhi.

 

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À tarde, um verso se insurge na minha cabeça enevoada. De repente, em letras malpostas, uma estrofe atípica: sem rima, sem compasso, sem rastro de mínima melopeia. Tão somente imersa num azedume de vingança, como se herdeira de um disparar à toa contra o verbo contido, misto de aflição e desesperança.

Ao fim da tarde, sob o império da quase noite, resolvo reler o que restou. E os escritos não resistem ao leitor de poesia criado por mim.

 

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À noite, antes do jantar em que me encontrarei à mesa comigo mesmo, vejo um casal que passa a se consumir em afagos loucos. Soletro para eles um soneto de Vinicius de Moraes, mas eles não têm ouvidos, nem fidelidade, para a poesia. A paixão se basta; desmedida, sem freios, nessa noite serenada por minha aflição de escritor indisposto.

 

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Visito o retrato dos meus pais, e uma oração brota em meus lábios incrédulos. Em seguida, metido na leitura de Cecília Meireles, invejo a lírica dos seus poemas.

Vou à cozinha, e as louças na pia zombam do meu mau jeito. Uma faca e um garfo, ao canto, parecem me ameaçar. Desligo a luz e caminho às escuras para a minha cama.

Na escuridão, o espelho me apresenta o espectro de hoje. Aquilo lembra um conto de Machado de Assis.

Deito-me, cubro-me e tento dormir. Na cabeceira, os fantasmas de ontem esperam que eu caia no sono. Abraçado à insônia, peço desculpas aos espectros pelo atraso aos pesadelos de hoje.

 

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Ao me levantar, uma xícara de café amargo. Reparo que o vidro da janela coa uma nesga de sol, e um raio tímido de luminosidade vem beijar a folha em branco esquecida entre os livros.

Com os olhos cansados, deponho as mãos sobre o papel e um menino, que eu pensara que desistira de tudo, assume o manejo das palavras naquele momento.

Lá fora, o zunir das abelhas, o cantar do galo, o badalar do sino da Matriz, o mexerico das vizinhas no portão… Licânia retomada, e eu entregue novamente ao ritmo das suas histórias.

 

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Resolvo não ler nada do que escrevi. Amanhã meu eu-menino revisitará aquilo outra vez. E terei, ou não, sido digno desse reinado.

 

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Percebo nas nuvens a minha imagem a zombar de tudo. Obra de olhos infantes que, graças a Deus, voltaram a tomar conta de mim.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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