PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXLVI)

Clauder Arcanjo

Considerações ocasionais

Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.
(Fernando Pessoa, em Livro do desassossego)

Sabia perder, desde que os resultados em disputa o beneficiassem, direta ou indiretamente. Caso não, ele reclamava do juiz, explodia contra a última jogada, exprobava acerca das regras previamente estabelecidas.
Com o tempo, ninguém mais o queria em campo, muito menos como parceiro de jogo. E toda vez que ele pedia para participar: o campo esvaziava, o juiz sumia com a bola, ou alguém jogava no lixo todo o carteado.
Ele saía em passo altivo, fingindo indiferença a todos para, na esquina seguinte, ponderar consigo mesmo:
— Nem todo mudo nasceu para lorde, Adamastor! Melhor só do que em jogo de mal-educados!

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Deus o marcara desde o nascimento, assim julgavam os licanienses.
No parto, Nonato Pestônio quase matara a coitada da sua mãe. Entre gritos e urros, a parteira o puxou, à força. Ao fim daquela luta pela vida, Deus o jogara no mundo com uma funda cicatriz na testa, um terrível sinete de nascença.
Na infância, Nonato apanhava de qualquer curumim. Desprovido de coragem, ele recuava frente ao primeiro tapa e metia-se para longe da companhia de todos. Num desses embates, um dos ataques o atingira, covardemente, na região dos bagos, deixando-os imprestáveis para sempre.
Na fria adolescência, Pestônio decidira seguir a carreira de sacerdote. As aulas de latim e oratória revelaram-se-lhe um verdadeiro inferno.
Com o avançar dos anos, Nonato Pestônio despontou como profeta do Apocalipse de Licânia, a passar os dias a percorrer as ruas da província, anunciando o final dos tempos:
— O fim está próximo, filhas e filhos de Deus! Convertei-vos e amanhã nós estaremos na companhia do Pai.
Dizem que Matusalém morreu mais novo do que aquele filho de Cristo.

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Um desocupado de Licânia denunciou:
— O homem mais trabalhador deste chão morreu de ócio extremo. Quanto aos demais, por preguiça, sequer foram ao velório do irmão tão próximo.

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Se o Seguro morreu de velho, a pobre Paciência já se entregou no próprio parto.

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De fraque e cartola, o velho Vargas Nabuco entrou na igreja e pediu ao sacristão para fazer, em plena missa, uso da palavra.
— O padre Araquento não há de consentir, seu Nabuco! — advertiu-lhe o diligente sacristão.
— Diga a ele que eu quero, hoje e no altar, anunciar a doação de todos os meus bens à Santa Madre Igreja — confidenciou o enfeitado cristão.
— Você quer falar no início, na homilia, ou nos ritos finais? — interrogou, vindo da sacristia, o zeloso pároco.

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João Marrento lia tão devagar e desatento que, ao fim do dia, corria os olhos em não mais do que uma página.
Rui Pompeu, seu pai adotivo, amante da língua pátria e companheiro inseparável dos clássicos, julgava-o um novo Sócrates:
— Como a minha alma sente sublime orgulho deste gajo! Sempre a extrair de cada verbo o néctar mais indecifrável.

Num banco de praça
A sombra de um velho assombra
O vento que passa.
(Luciano Maia)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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