PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCXLIX)

CLAUDER ARCANJO*

Há anos que não têm fim

 

“Não se pode ser sério aos dezessete anos.”

(Arthur Rimbaud, em “Romance”)

 

A Morte chegou, olhou para dentro de todos os cômodos, observou a face de cada desvalido e recuou. Não sabiam se atendendo às orações, se aos pedidos dos mais protegidos, ou se com pena de quem apresentava o horror nas bocas murchas.

Registram os anais do Além que, naquela mesma noite, logo em seguida, a Morte voltara ao seu redil, olhara para dentro dos cômodos e, ao observar os olhares dos já vencidos, bradara, furiosamente:

— Os de lá já estão, há tempo, no Inferno.

 

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Nasceu consciente; cresceu sábio, mas inválido para as coisas da vida comum. Aos oitenta anos, morreu feliz e ainda aconselhando. Numa tarde chuvosa e embaçada, sete amigos acompanhavam o seu caminho rumo ao campo-santo.

Hoje, doze meses depois, fixaram-lhe uma lápide no túmulo: “Aqui descansa, não se sabe se em paz, José da Silva, único que se meteu a filósofo neste fim de mundo. Que o Além lhe seja leve.”

 

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Um escritor de Licânia rabiscou e encaminhou para o bispo:

“Os poetas daqui não gorjeiam, muito menos metrificam. Se os versos são livres?! Sim, livres de qualquer atrativo. Quanto aos cronistas daqui, ah!, todos sumiram no rabo do último cometa. Nefelibatas por natureza, viviam decantando o mar e as ondas em pleno sertão. ‘E os romancistas deste chão’, você me indaga. E eu corro daqui, com medo dessas assombrações, senhor bispo. Ah, Licânia!, tu és província digna de melhores escrevinhadores.”

 

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Toma a tua cruz e segue. Mas antes, caro amigo, verifica se estás com o madeiro correto, pois andaram sumindo com a do meu vizinho.

 

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Deusilua Questino duvidava das teorias em voga. Quando foi ao consultório médico pela primeira vez, ouviu todas as recomendações, recebeu calado a receita com as prescrições médicas, para, na esquina seguinte, esbravejar ao primeiro passante:

— Desconfie dos homens de branco. Quem assim se traja, filho, é porque quer esconder a escuridão do seu tenebroso ofício.

Deusilua, ao ouvir na tevê que havia uma recomendação de saúde pública para que os cidadãos se vacinassem contra a gripe que assolava o País, deu um cotoco para o aviso e disparou:

— Saúde de homem de juízo se mantém com limão e raspa do olho da goiabeira. No meu braço, não!

Com a idade avançada, Deusilua resolveu cursar filosofia, incomodado com as modernas teorias acadêmicas em voga. Nas aulas, ele tudo lia e anotava. Ao final do semestre, Questino trancou a matrícula. Quando indagado pela diretora do curso acerca do fundamento da sua decisão, elencou tantas teorias desencontradas para justificar-se, que foi encaminhado direto para o manicômio público. “Deixem este paciente isolado dos demais, o caso é deveras contagiante” — foi a orientação do médico plantonista.

Comentam que, sozinho e com tempo disponível, Deusilua Questino elabora uma teoria filosófica revolucionária, tão avançada que unirá o nada a porra nenhuma.

 

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“Deus nos observa!”; alertava a bela Dagmar para conter as ousadias do Bastião Pernagrande.

Sete meses depois, com a gravidez da filha avançada, a mãe de Dagmar confidenciou ao padre Araquento:

— Deus deve ter dado um cochilo naquela noite, seu padre.

 

— Existe um Deus, que ri nas toalhas dos altares

Num cálice dourado, entre incensos, e nesse

Tranquilo acalentar de hosanas adormece;

 

E acorda quando as mães, morrendo de pesares,

Choram de angústia, sob o negro xale imenso,

E Lhe dão uma moeda, amarrada no lenço!

 

(Arthur Rimbaud, em “O mal”)

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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