PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCX) – Clauder Arcanjo

(Óleo sobre tela “O pequeno camponês”, de Amedeo Modigliani).

“E acrescentarei, para zombar dele: não é a pedagogia do afeto que nos melhora, mas a pedagogia do assombro.”

(Domenico Starnone, em Segredos)

 

A noite chegou e a encontrou aflita. E, pior, sem Matilde saber o porquê. Revirou suas lembranças, nada de dramático. Revisitou os dramas, rotineiros. Esmiuçou os seus projetos, todos em franco andamento.

Ainda mais aflita, Matilde apenas lembrou que na alvorada de hoje, no instante em que abrira os olhos, se esquecera de sorrir para aquele céu tão azul. Aflitivamente anil.

 

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— Algo o incomoda, Nelson Arotza? Está inquieto feito um bicho-carpinteiro!

— Impressão sua, compadre Merakili!

— Como impressão? Você não para quieto, sempre com os olhos a correr altos e baixos, mundos e fundos — inflamou-se Nelson.

Merakili pôs seu olhar devassador sobre o compadre Arotza e afirmou-lhe:

— A curiosidade revela-nos o âmago daquilo que para os outros seria simplesmente algo não percebido.

 

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Berez dominava sua raiva, mas não acendia seu amor. Certa noite, rolando sobre a cama, ela suspirou, suspirou e se levantou para proferir impropérios contra os homens do mundo.

— Que venham a mim todos os devassos para que eu me torne louca de amor.

 

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Janúncio Alforoz desceu da boleia do velho caminhão, bateu a poeira de dias e caminhou em direção ao adro da Matriz de Sant’Anna. Chegando lá, ajoelhou-se contrito, antes de proferir:

— Deus Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra… dê um jeito de acabar com toda esta merda. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Alforoz voltou para a boleia do velho fenemê, acomodando-se regiamente. E só então partiu, a assanhar a poeira das benditas ruas de Licânia.

 

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O pequeno feirante Tobias Froita sabia oferecer seus produtos:

— Olha a laranja de Roma!

— Leve para casa o limão da França!

— Quem quer a uva chilena!

Berábio Veteris, brasiliano de escol, interrogou-o:

— E do nosso País, jovem Tobias?

— Temos o abacaxi do Brasil. Maior não há!

 

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Bonifácio Ternero açulava os seus impulsos de uma forma taurina. Ninguém se surpreendeu quando ele foi imolado nas touradas do destino.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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