Eu era um grão de areia no deserto do oblívio.
(Raymond Chandler, em O longo adeus)
Ousei furar a névoa do silêncio que nos envolvia:
— Pense nos novos dias que virão.
— Nada que possa surgir nos salvará deste desterro, Ernesto Sahra — argumentou.
— Não diga isso, Bella Hazin! Os seus olhos estão mergulhados na água suja do pessimismo.
— E os seus? Repare na sua voz, sempre a se revelar tímida quando o seu olhar não acredita no que a boca propaga. Olhe à sua volta, Ernesto! Repare em tudo ao nosso redor: um deserto do oblívio.
Nesse exato instante Ernesto Sahra, arrependido de lhe ter emprestado o seu exemplar de Chandler, percebeu que tudo que dissera seria tão só um grão de areia no deserto d’O longo adeus.
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— Quem nega a verdade é companheiro do Satanás, Maurílio Bispo?
— Onde você ouviu isso, Genária?
— Aqui, no sofá da sala. Da boca do namorado da Hermília, noite passada — informou Dona Genária Bispo.
Maurílio largou o jornal, levantou-se, rodou em torno da cadeira em que estava sentada a esposa. Então, sob forte emoção, exaltou-se:
— Tome cuidado com esse desgraçado, mulher, ele está prestes a furar o bloqueio da nossa filha.
Genária arregalou os olhos, fez o nome do pai e declarou:
— Sim, lembro-me bem de como você, meu demônio, fez comigo!
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Dalgisa Murteira fingia-se amiga das vizinhas no intuito de colher as novidades da praça. Mal trancava a porta de casa, noite alta, pedia perdão ao Senhor por ter ouvido tantas faltas.
Mas, quando Dalgisa tomou conhecimento de que ela própria fora o assunto principal da roda das vizinhas na noite em que se ausentara de Licânia, soltou a peia da língua, a vomitar:
— Cuidado, não vão morder a língua, cambada de serpentes! E que o Senhor reserve para vocês o caldeirão mais quente, a fim de conseguir ferver a carne dura com tantos pecados.
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Homélia nunca reparou que o seu corpo era mais musculoso do que o das outras meninas. Muito menos que a sua voz era de um timbre forte.
Quando se enamorou de Darcílio Pernetta, Homélia abraçou-o com tanta paixão que ele gemeu:
— Ai, Homélia!
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Notou que a meninada adorava ouvir suas histórias, porém elas sempre dormiam antes do relato final.
Certa noite, Sherázio mudou de prosa e quis contar uma história verdadeira. Quando pôs o ponto final na narrativa, Sherázio observou que as crianças, ainda despertas, estavam deveras aborrecidas:
— Esta não vale, seu Sherázio. Que coisa sem graça! Pode contar outra, ouviu?
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Na vigília do sono, cativava a esperança. Só assim, quando no umbral do pesadelo, conseguiria adoçar o destino anunciado com o mel da alegria.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.