PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXVIII)

                                                                   Clauder Arcanjo*

 

 

Confidências a Camões

As armas e os barões assinalados,

Que da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

 

Na dívida a Os Lusíadas, a graça, a força canora e a ferocidade sublime do teu vero canto, Camões. Assinalo isso aqui com meu brasão de provinciano licaniense, pretenso estilo, antes que, por exigência das Musas, me peçam mais cabal argumento.

 

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando;

E aqueles que obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

 

***

 

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?  

 

Não te importas, Luís de Camões, com companheiro tão pequeno? Aqui hei de cantar teu canto, anunciar teu brilho, decantar meu espanto. Há versos teus que, solitários e mal percebidos, valem muito mais de que toda a dita, e mui aclamada, moderna poesia.

Tanta poética para tão curta vida. Tanta mestria para tantos falecidos impérios poéticos.

 

“Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,

Uma suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

Desculpado por certo está Fernando

Para quem tem de amor experiência;

Mas antes, tendo livre a fantasia,

Por muito mais culpado o julgaria.”

 

***

 

“Não falta com razões quem desconcerte

Da opinião de todos, na vontade;

Em quem o esforço antigo se converte

Em desusada e má deslealdade,

Podendo o temor mais, gelado, inerte,

Que a própria e natural fidelidade;

Negam o Rei e a Pátria e, se convém,

Negarão, como Pedro, o Deus que têm.

 

Respeito a opinião de todos: até a daqueles que jamais te leram e a ti devotam estranha, sórdida e inexplicável ojeriza. Contudo haverá um dia no qual, na ocasião e hora acertadas, aclamarão o teu engenho, Camões, enquanto sorverão no peito varonil o néctar da tua ínclita e elegante arte.

 

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“Dura inquietação d’alma e da vida,

Fonte de desamparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinos e de impérios!

Chamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo digna de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana!

 

Quando se verseja, sem olhos postos na Fama, vão gosto que a muitos atiça, a estrofe não se mistura com as fezes da Vaidade; e o poema vê-se sem o tormento da “vã cobiça”, a desfilar, contente, em saber-se lídimo e “só de experiências feito”.

 

“Os casos vi, que os rudos marinheiros

Que têm por mestra a longa experiência,

Contam por certos sempre e verdadeiros,

Julgando as cousas só pela aparência,

E que os que têm juízos mais inteiros,

Que só por puro engenho e por ciência

Veem do mundo os segredos escondidos,

Julgam por falsos ou mal entendidos.

 

***

 

“Gastar palavras em contar extremos

De golpes feros, cruas estocadas,

É desses gastadores, que sabemos,

Maus do tempo com fábulas sonhadas;

Basta, por fim do caso, que entendemos,

Que, com finezas altas e afamadas,

Co’os nosso fica a palma da vitória,

E as damas vencedoras e com glória.

 

— Mas a vitória, mestre Camões, desceu sem estrépito nas tuas rimas? Rimário que alegra, consola e redime toda conquista pela força bruta.

Há, perpétua batalha, a vontade do homem em ser vencedor, em sobreviver à Morte, sobrevivendo nos mitos, nas fábulas… com o “penacho do elmo” a açoutar os ventos da perpétua lembrança.

 

O prazer de chegar à pátria cara,

A seus penates caros e parentes,

Para contar a peregrina e rara

Navegação, os vários céus e gentes,

Vir a lograr o prêmio que ganhara

Por tão longos trabalhos e acidentes,

Cada um tem por gosto tão perfeito,

Que o coração para ele é vaso estreito.

 

***

 

Vê que aqueles que devem à pobreza

Amor divino, e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade;

Da feia tirania e da aspereza

Fazem direito e vã severidade;

Leis em favor do Rei se estabelecem,

As em favor do povo só perecem.

 

Camões, tua poesia é “sonora e concertada”, enquanto a canção da tirania é cruel e insana. O povo sofre e desfalece, ao tempo em que o mando amola seus ferros, a fim de tirar de todos o couro, mas a alma nunca se subjugará. “Quem faz injúria vil e sem razão, /Com forças e poder em que está posto, /Não vence, que a vitória verdadeira /É saber ter justiça nua e inteira.”

 

Assim foram cortando o mar sereno,

Com vento sempre manso e nunca irado,

Até que houveram vista do terreno

Em que nasceram, sempre desejado;

Entraram pela foz do Tejo ameno,

E à sua pátria e Rei temido e amado

O prêmio e glória dão por que mandou,

E com títulos novos se ilustrou.

 

***

 

E, mastro da minha nau, o brasão assinala Licânia, sem a dita de Lisboa ter inveja. E eu cá espero, um dia sagrado, abrigar-me em teu sereno e “régio solo”.

 

Fonte: trechos em itálico do livro Os Lusíadas, de Luís de Camões (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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