PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXXVI)

Clauder Arcanjo

Confidências a Marguerite Duras

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Marguerite Duras)

É numa casa que a gente se sente só. E não do lado de fora, mas dentro dela. No parque, há pássaros, gatos. E também, uma vez, um esquilo, um furão. Não estamos sozinhos em um parque.

 

Aqui, Marguerite Duras, há homens e mulheres sozinhos no parque. Melhor, abandonados, esquecidos, famintos, ao relento. Loucos pela solidão de uma casa, na qual pudessem se perder por entre o vazio de seus quartos. Neste país tão desumano e desigual, os pássaros cantam, envergonhados. Aqui a solidão caseira é luxo, Marguerite, para muitos.

 

E que é somente nesta casa que fico só. Para escrever. Não para escrever como havia feito até então. Mas para escrever livros ainda desconhecidos para mim e jamais determinados nem por mim nem por ninguém.

 

Quero escrever com o sangue da revolta, Duras, no entanto minha pena é fraca, tímida, quase sempre omissa. A comoção é tanta que, por vezes, embarga o meu duro ofício de escrevinhador. Canalhas, não determinem a minha escrita!

 

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Compreendi que eu era uma pessoa sozinha com a minha escrita, sozinha e bem longe de tudo.

 

Não saberia rascunhar sequer um parágrafo se não me visse próximo da minha província. Só, fisicamente, mas acompanhado pelos meus fantasmas, pelas tragédias que me conduziram até aqui.

Meu caminho é árido, porque árdua tem sido a caminhada da minha gente. Sou o que sou porque vivo acompanhado pelo meu mundo provinciano, por minha Licânia. Arteira, sofrida, pobre… porém a me transformar (e nutrir) com a sua seiva.

 

A solidão da escrita é uma solidão sem a qual a escrita não acontece, ou então se esfarela, exangue, de tanto buscar o que mais escrever. Perde o sangue, não é mais reconhecida pelo autor.

 

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Escrever era a única coisa que preenchia minha vida e a encantava. Foi o que fiz. A escrita jamais me abandonou.

 

Sinto aqui dentro uma vontade de largar tudo: compromissos burocráticos, conversas nutridas de vazio, encontros regados a vácuo… e me entregar tão somente ao ofício da escrita. Se me falta coragem? Não sei. Porém, acredite, Licânia tem fôlego para sustentar a minha pena viva. Isso, pode crer, eu sempre soube.

 

Posso dizer o que quiser, mas jamais vou saber por que escrevemos e como não escrevemos.

 

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Encontrar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita vai te salvar.

 

Acredito que, quando me vejo no vácuo mais intenso, emerge a legião de tipos de minha terra. Quando os imaginava perdidos na imensidão da desmemória, eles me ressurgem: intensamente presentes, ditando suas histórias, exigindo-me compromissos com suas desventuras, com tantos nacos de risos, nas situações mais inusitadas e fantásticas, tramando meu verbo por entre a carne de seus mundos.

 

Do momento em que estamos perdidos e que, portanto, não há mais nada a escrever, nada a perder, escrevemos.

 

— Mas não me disseste, Clauder Arcanjo, que tu escreves para não enlouquecer!

Sim, caro leitor, os gritos que ouço nas noites mais agoniadas, se não se convertessem em livros, serei obrigado a confessar, já me teriam enlouquecido. Escrever exige que eu sempre fique ao seu (deles) dispor. É impossível abandoná-los. Seria para mim um crime.

 

Vai muito longe, a escrita… Até que acabe. Às vezes é insustentável. De repente, tudo ganha um sentido em relação ao que se escreve, é de enlouquecer. Não conhecemos mais os nossos conhecidos e acreditamos ter estado à espera dos estranhos.

 

Fonte: trechos em itálico do livro Escrever, de Marguerite Duras (Belo Horizonte: Relicário, 2021).

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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