Pílulas para o Silêncio – (PARTE CCLXIX)

                                                                                                                                    Clauder Arcanjo*                                                                                                                            

                                                                                                  

 

 

 

 

 

 

 

 

(Arte de Juraci Dórea)

 

Dois sertões

 

Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.

(“Notícia do Alto Sertão”, de João Cabral de Melo Neto)

 

O primeiro sertão nascia dos cafundós e se esticava até os espinhaços do serrote à beira do mar. Lá havia dias longos e quentes, tardes mornas e cansadas, seguidas de noites com vento vadio e madrugadas coiteiras de sono.

Nessas lonjuras pedregosas, as cabras reinavam e os homens sobreviviam. Em algumas noites, um aboio perdido anunciava a existência de um vaqueiro sem destino. Em outras, o voejar das corujas riscava os céus, prenúncio de desgraça, como se desgraça maior ainda fosse possível.

Quando Valdomiro Querença chegou, desceu do cavalo e assuntou pelas moças do lugar, valha-me Deus, foi recebido à faca. Sem mais nem menos, só pela presunção de assuntar.

Querença teve direito a cova rasa, no sopé de um morrote, junto à furna das raposas do lugar. Sem cruz, nem reza; forma de nunca ser lembrado, nem dele se falar.

Este primeiro sertão, dos cafundós até os cumes do serrote à beira-mar, esticou o espinhaço da lida dura, com todas as mulheres no caritó a rezar: “Maria, que morreste virgem, traze-nos maridos capazes de nossos parentes matar!”

 

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O segundo sertão, relembram os mais atilados, era de léguas palmilhadas. Quanto mais nele se entrava, mais se perdia. Quando o vivente pensava que no meio se encontrava, as beiradas ainda percorria. O céu, traquinas e novidadeiro, cutucava os teimosos, ofertando um luarado tão benfazejo que o estropiado animava as forças e se metia, no alvorecer seguinte, sertania adentro.

Quando Legário Bonifrate deu com o rio de Licânia, as ribanceiras coalhadas de garças brancas e a aluvião pejada de oiticicas e carnaubeiras, rosnou, imperioso:

— Daqui não arredo o pé. Nem morto.

A seca do Quinze honrou seu dito, Bonifrate foi plantado em cova funda, sob os olhares da esposa e filhos.

Vieram outros, mais turrões ainda. Fincavam a enxada no chão, enfiavam-lhe a semente, rezavam pela invernada. Até rugirem a jura:

— Daqui não arredo o pé. Nem morto.

E a seca seguinte honrava-lhes o juramento.

O segundo sertão, decantam os mais inspirados, era de léguas condenadas. Quanto mais nele se entrava, mais nele se enterrava.

 

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Quando esses dois sertões se juntaram, apesar da língua do Velho Santico de que o mundo viraria uma desgraceira só, soalheira e pó, surgiu um sujeito a riscar as pedras grandes com o sangue das cabras. Aquilo atraía os olhares dos moços e atiçava o cocuruto dos antigos, a lembrar-lhes dos bichos, da lida da terra e dos ossos na mataria.

— O que quer esse desgraçado? — perguntavam os moradores das redondezas, incomodados.

Nada respondeu, perdido dia e noite naquela pintura em mural pedregoso. Quando a Onça Caetana o levou, tal despautério de figuras, cenas e tipos cobria todo o longo costado do Serrote da Rola.

Quem hoje passa por lá fica abestalhado com tamanha criação.

Outro dia, um pesquisador, a escavacar o entorno, encontrou no sopé essa inscrição: “Caso o Senhor retorne, como rezam as promessas bíblicas, ele surgirá com pés de pedra, alimentado com o sangue da criação”.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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