PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCLXI)

 

Clauder Arcanjo*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Foto de Antônio Maria)

Confidências a Maria

 

“Um artista desrespeita todos os governos, suprime todas as convenções. Um poeta só na desordem se sente bem.”

(G. K. Chesterton, em O homem que era Quinta-feira).

 

E com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria:

Lembram-se dele?

 

Um artista da palavra, grande amigo da prosa poética. Amando, com todo o coração: o instante vadio, o momento de agora, o flagrante inusitado na janela do dia, a felicidade fugaz dos casais na madrugada encantada.

Após dois meses sem escrever uma só palavra, cá estão estas que, embora não pareça, dizem tudo.

 

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Seria possível, sim, preservar o amigo de infância se possível fosse preservar e manter a infância. O ar e a luz de suas manhãs. As cores do casario. Os cânticos e o incenso das novenas. A beleza, a coragem e as esperanças do menino.

As manhãs, grande menino, ainda surpreendem. Sem o perfume da província, bem sei. Contudo, quando uma bela jovem a desfilar inaugura o clímax da tarde, as árvores deixam cair suas folhas para lhe forrar os passos e os homens, antes manchados pelos compromissos pecuniários, haurem o cheiro da paixão possível, como se crianças fossem.

Perdoai, senhores, tantas lamúrias. Mas cada um dá o que tem.

 

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As lembranças do Ceará são muitas e repletas de saudade. Nossos amigos, poetas e jornalistas, pescadores, fazedores de cajuína, conversadores da praça do Ferreira, cometeram a sensatez de ficar por lá.

Saber que pisaste minha terra, Maria, faz-nos Antônios irmãos. Não pela graça dos meus escritos, mas, sim, pela grandeza de tuas construções, nas quais o vocábulo exato desponta doirando a página como um peixe numa piracema lírica.

Tu me ensinaste, mesmo quando cercado de pessoas atordoadas, a colher a brandura e a graça no

É necessário, portanto, viver mais, além do instante que seria o último, por essas pequenas felicidades que tivemos. Por mais habituado que se esteja consigo mesmo e, de si mesmo fatigado, o minuto a mais será sempre um nascimento e uma redenção. Por essas crenças que ainda me restam, gosto de viver agora que anoitece e a rua está triste. E gostarei mais ainda amanhã, quando vier outro dia para clarear o mar.

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Terei que ser assim, até parar. Um homem, que escreve nos jornais. De quem se elogiam os escritos, por gentileza, modismo ou falta de assunto. Sobre quem se silenciará, de vez em quando, por gentileza. Cercado de pessoas que atordoam. Um homem sem haveres, fazendo conta dos seus deveres.
Com teimosia, escrevemos nos jornais; e os homens, presos à modernidade, não ousam ler a crônica do dia. Suspeito que com receio de colherem uma lágrima furtiva que nem sabiam restar em seus peitos de aço e vidro.
Lá fora, Maria, um bem-te-vi pousa no galho da alvorada e oferta, gracioso e egoísta, a sua condição de heroico pastor da noite.
No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga… tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.

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Nunca me poderão acusar como falador da vida alheia, porque não sei fazer outra coisa que não seja falar de mim. Falo dos outros, é claro, mas, sem grande sucesso. De mim, a quem desconheço totalmente, falo de cadeira.
Hoje, menino de olhar triste, somente hoje, recordemos, com intimidade: as artesanias de Cony, o poético Braga, a placidez de Caymmi, a chegada de Vinicius de Moraes com a primavera, as quatro Marias do Pará, a assiduidade de Joaquim Cardozo, as lembranças de Ovalle…
Todo cronista, Antônio Maria, é um cantador das suas próprias modinhas. Somente elas, por feliz coincidência, encantam os outros (nossos próximos). E, se obtêm tamanho êxito, é porque nascem batizadas com o sublime, solfejadas pelas bocas das musas mais encantadoras. E, depois, guardadas no reino do silêncio imaculado e lírico.
O silêncio está parado, ali, à nossa espera. Não vamos quebrá-lo; vamos, sim, tomá-lo para abrigo de tudo o que de mais puro existe, em silêncio, dentro de nós.

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A noite abranda a alma e quebra os propósitos. O sacrário do sigilo humano abre muitas vezes as suas portas e fogem as confidências, as confissões, os gestos e as palavras da generosidade.
O sol nunca te encantou, Maria, apesar do respeito à memória dos seus feitos, ao seu dourado legado, ao debrum desmesurado de cores pontual. Sabias que a noite, dama vestida de mistérios, arrancava dos homens a confissão mais pura, absolutamente franca e dadivosa. Mistério, mistério magnânimo que encanta e brilha.
O céu repete o azul de tantas tardes acontecidas em maio, as últimas quaresmeiras do verão agonizam na saia do morro, os homens martelam a pedreira… E eu não sinto vontade de rir ou de chorar.

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Há uma dor de cotovelo imensa, geral. Um desamparo, que a gente vê nos olhos mendigos das mocinhas, das menos mocinhas, nos olhos já velhos deste que vos escreve…

Obs.: os textos em itálico foram extraídos do livro Vento vadio: As crônicas de Antônio Maria (São Paulo: Todavia, 2021).

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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