PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CCCLXV)

Clauder Arcanjo*

(Pintura Narciso, de Caravaggio)

E OS PERSONAGENS SE ENCONTRAM…

Para Roberto de Barros Emery Trindade

        Numa noite escura em que o sono não me veio, sou surpreendido por
uma conversaria no meu escritório. Ao abrir a porta, uma reunião inesperada.
Pude colher o final de uma frase acerca da situação cultural dos dias
presentes:
— … dominada pela sanha e pela ira daqueles que nada escrevem, mas
que em tudo põem defeitos.

Conselheiro Acácio, cavaleiro da Ordem de São Tiago, resolveu
concordar, não sem antes propalar com um jeito pálido e o seu ar de fastio:
— Como reagiriam o nosso Garrett e o nosso Herculano? Prefiro
silenciar e cerrar fileiras junto aos princípios da ordem e da moralidade
públicas.
Companheiro Acácio, apesar de sua reconhecida influência eciana, quis
arguir o Conselheiro quanto à mancebia deste com a criada. No entanto
conteve-se, cofiando o bigode e resmungando obviedades para evitar embate
tão constrangedor. Ao me ver, Companheiro disparou irônico:
— Não gosto de citar o Clauder Arcanjo aqui presente, senhores, mas
hei de concordar com uma opinião deste reles provinciano. Ou seja, não se
deve ler como quem busca uma tábua de salvação.
Ao pé da estante, Nabuco incitava opiniões ainda mais mercuriais:
— Shifzz… fzzz… miau, miau… fshifzzzz…
Pacheco, recém-surgido de outro tomo de Eça, elevou o dedo e
devolveu:
— Nabuco, sua excelência, aí ao pé das bancadas, faz berreiro; eu, aqui
nesta cadeira, faço luz!
— Shfzzz… fzzz…. fzzz… miau… ffsshifzzz…
Melhor, caro leitor, não traduzir o que o gato Nabuco disse como
resposta ao Pacheco. Não enodoemos nossa página com expressões tão
contaminadas pela fúria.
Como eu estava lá, nesse esplêndido momento, colhi, naquela estranha
assembleia literária, uma “apaixonada e fervente rajada de aclamações”.
Aquilo, creio, fez com que Nabuco retornasse ao mundo das letras.
Eis que surge Ferreirinha, egresso da novela Pindaíba, com os olhos
piedosos e a voz galante dos tímidos:
— Deixemos as coisas menores de lado. Deus há de nos ajudar. Olhai
os lírios do campo…
Um silêncio estranho cercou aquele momento. Ao canto, circunspecto, o
Conde d’Abranhos. Esperei algo dele.
Com pouco mais o Conde resmungou, lançando sapiente estas
palavras:

— Não sei o que hei de responder; a luta é desigual: eu só tenho por
mim o estudo, e Vossas Excelências têm o gênio.

Ao despertar, corri depressa para o escritório. Lá chegando, percebi a
presença de livros meus e do Eça de Queirós sobre a escrivaninha: Uma garça
no asfalto, O primo Basílio, O Fantasma de Licânia, A correspondência de
Fradique Mendes, Pindaíba, O Conde d’Abranhos. Sem mencionar diversas
páginas soltas com textos meus recém-escritos.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro

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