PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CC) – Clauder Arcanjo

Foto: Novo Ano, de Marcão Melo.

Quando saiu para comemorar a passagem do ano, Moisés se encontrou na esquina, com a mentira em forma de promessas de um ano bom; na tevê, com as velhas e revelhas notícias da “nova” política; na rádio, com um programa em que a qualidade musical pedia longa distância.

Ao voltar para casa, a presença do velho mendigo do bairro, sentado na calçada da frente a lhe lembrar que o Natal e o Ano-novo eram coisas de sonho.

— E o novo normal?!… — desabafou consigo.

O papagaio Sócrates, entre um curupapo e outro, devolveu-lhe:

— Vai dormir, Moisés!

 

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Em toda oração do Argemiro, pecador contumaz, havia uma nesga de otimismo. Diferente dos crédulos, pois ele esperava que o inferno não desaparecesse de todo; bem desconfiado de que o paraíso eterno deve ser algo insuportável.

 

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Rosálico dormia como um anjo e despertava como um louco. A vida exigia-lhe o compasso dos extremados.

 

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Toda vez que visitava um manicômio, Dostoinho suspeitava de que a seleção dos pacientes apresentava um viés proposital.

— Se não prenderem esses coitados, como eles suportarão a sua condição de idiotas!

E cuidava de deixar o recinto. Depressa, sem se fazer percebido.

 

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Água fresca em cabeça quente é motivo de cura ou de malefício. Depende do mago da autoajuda que a prescreve.

 

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Nasceu no lixo, cresceu no subúrbio, venceu na favela. Seu nome de batismo: Resiliente Augusto Brasileiro Filho.

 

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Quis escrever uma carta, deparou-se com uma crônica. Fez menção de escandir um poema, brotou um conto.

Desesperado, levou a pena em direção a um aforismo… nada lhe ocorreu. Os aforismos só surgem para quem os merece, mas nunca os procura.

 

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Ao se aproximar de Dalgisa, Protássio Cândido de Almeida vestia uma bela camisa e levava nos lábios o seu melhor discurso.

Quando Protássio ia se declarar à sua musa, os olhos de Dalgisa pediram-lhe, com o aparte dos seus lábios carnudos, apenas o apaixonado e cândido silêncio.

 

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Domérico Bispo era amigo do descanso e hostilizava o cansaço. Alegava ao povo da província que os sábios precisam de “tempo discricionário” para as suas “sublimes criações”.

Anos depois resolveram fazer um balanço de sua “herança criativa”, e ficaram boquiabertos com o resultado alcançado por Domérico: duas guinés, um papagaio velho e depenado e, no jardim, frondoso pé de pião. Este, segundo os vizinhos, para espantar o mau-olhado.

 

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Na posse dos novos gestores municipais fica a pergunta: em quantas dessas solenidades a honradez foi a principal convidada?

 

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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