Peleja – Clauder Arcanjo
Peleja – Clauder Arcanjo
Quinta-feira, 4 da madrugada. Não consigo dormir. Levanto-me e lavo o rosto na água fria. Lá fora a cidade dorme. Como se edificada sobre a paz e a glória de homens e mulheres bons e justos. Sento à minha escrivaninha; e clamo, rogo pelo verbo. Sim, clamo e rogo!, pois há dias que tento escrever a minha crônica do domingo, e as palavras não me acodem.
Falar e escrever acerca de quê, meu Deus?!
O branco da tela zomba da minha falta de assunto. Ô meu Pai!…
Levanto-me, vou à biblioteca e me encontro com Fernando Pessoa; releio o seu singularíssimo poema “Tabacaria”. O mestre Hildeberto Barbosa Filho me ensinou que, quando triste, triste de não ter jeito, é o melhor remédio para espantar-lhe a melancolia do espírito.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Pessoa nos leva a Pessoa; resolvo, então, revisitar (e navegar na poética de) “Mar Português”, do livro Mensagem:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Náufrago da beleza, alumbrado com tão belas estrofes, resolvo preparar um café donzelo.
Um caminhão despeja a sua dose de fumaça na calçada em frente ao meu prédio. Esse motorista nem suspeita que, no edifício à sua frente, um cronista peleja para cumprir o seu ofício semanal de escrevinhador de jornal.
Sorvo uma xícara da rubiácea na varanda, com os olhos postos no nascente. São cinco da manhã. O tempo quente, abafado. Prenúncio de trovoadas? Não sei.
Volto ao meu mister e penso em fechar uma página qualquer. Quem sabe repetir um texto de dois anos atrás!? Alguém perceberá tal repetição?
Não, não cometerei tal pecado de lesa literatura. Existe sempre um leitor a nos aguardar no domingo. E a existência de um só deles obra o milagre de me submeter ao martírio de escrever sem ter sobre o quê escrever.
Que tal discorrer sobre a falta de ética na política? Não, melhor seria sugerir que todos nós, eleitores, lêssemos Aristóteles, de Ética a Nicômaco.
E saudar João Almino, escritor filho de Mossoró, que foi eleito para uma cadeira na Casa de Machado? Outros já o fizeram, e com mais propriedade, profundidade e autoridade do que eu. Parabéns, Academia Brasileira de Letras, João Almino é escritor que consagra a nossa casa maior das letras nacionais!
O sono me torna aos olhos. Paro e resolvo reler um outro verso de Pessoa, desta feita de “Prece”: “Senhor, a noite veio e a alma é vil.”
O dia se anuncia por entre nuvens grávidas de chuva. Não sei por que lembrei-me da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Tenho dificuldade em localizar uma das suas obras na minha pilha de livros de cabeceira.
Ôpa!, aqui está. Leiamos, juntos, os versos de “Dia”:
Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gosto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda
Fiquemos por aqui. O dia veio, belo e quente, contudo a crônica não veio.
Perdão, meus leitores! Não olheis os meus pecados de cronista, mas a fé que anima a minha peleja.
Bom domingo.
Clauder Arcanjo