Os últimos guardiões da floresta amazônica

Os índios xikrin têm a luta pela sobrevivência gravada nos genes. O velho xamã Tedjore ainda lembra a “reconquista de Rapkô”, a aldeia amazônica que recuperaram do “homem branco”, o mesmo que agora, três décadas depois, volta a invadir seu lar.

Situada no estado de Pará, a terra indígena Trincheira Bacajá é a Amazônia em estado puro. Um reduto do pulmão vegetal da Terra onde vagueiam onças e cobras, e onde árvores milenares resistem ao desmatamento e às ondas de incêndios.

Lá, o xamã enfrentou os invasores quando era criança. Com o rosto pintado e a coroa de plumas de arara, Tedjore conta a ofensiva dos xikrin contra um grupo de madeireiros e mineiros ilegais. O confronto foi duro, mas os indígenas conseguiram expulsar os invasores sem derramar uma gota de sangue, segundo ele.

“Nos tempos de nossos pais, o homem branco já invadia a nossa terra”, lembrou.

A INVASÃO DO HOMEM BRANCO

Antigo cacique da aldeia Bakajá, Bep-Djáti Xikrin não sabe a própria idade. Seus parentes acreditam que seus cabelos brancos e as histórias de guerra escondem mais de 90 anos. Nove décadas em meio à densa floresta da reserva Trincheira Bacajá, onde este povo se assentou na década de 1920 depois de anos de nomadismo.

Bep-Djáti pode ter dificuldade para caminhar e um olhar que aparenta cansaço, mas é a memória viva dos xikrin, um povo organizado, forte e aguerrido. Dedicou grande parte de sua vida à proteção de sua terra.

“Sou um guardião da floresta”, advertiu.

Da mesma forma que o xamã, Bep-Djáti lutou desde pequeno – “junto com os irmãos guerreiros para conter a invasão”, disse. Porém, se antigamente o homem branco temia entrar na reserva indígena, atualmente o cenário é bem diferente.

“Hoje, entram e saem, e não podemos fazer nada”, lamentou.

As imagens de satélite refletem como o desmatamento avançou a passos gigantescos na região e já ameaça toda essa terra indígena, uma área frondosa e virgem de mais de 1,6 milhão de hectares, cerca de 20 vezes maior que a área da cidade de Nova York.

Após séculos de luta, os posseiros intensificaram o ataque. Nos sete primeiros meses de 2019, foram destruídos nesta reserva – na qual vivem 2.000 índios – o equivalente a 1.309 campos de futebol, o que representa um aumento de 155% em relação ao mesmo período no ano anterior, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cuja confiabilidade foi colocada em dúvida pelo presidente Jair Bolsonaro.

“CAÇAR OS ÍNDIOS”

A 30 quilômetros da aldeia Rapkô, madeireiros, mineiros e grileiros abriram caminho na reserva dos xikrin e construíram assentamentos nos quais impera a Lei de Talião.

Cansados de esperar a atuação de governos que cada vez mais parecem distantes da questão, os guerreiros xikrin iniciaram há algumas semanas uma expedição para apreender motosserras e armas, e para exigir a retirada de 300 famílias de invasores.

“Fomos atrás de madeireiros e fazendeiros. Chegamos lá, e disse a eles: ‘se vocês atirarem, vamos atirar também, e para matar’. Não fomos para brigar, fomos para conversar. Eu perguntei: ‘quem mandou vocês entrarem nesta área, quem é o chefe de vocês?”, contou Dep-Djati Xikrin, guerreio da aldeia Rapkô.

Como resposta, os xikrin receberam ameaças: mensagens de áudio que alertavam que havia um grupo de homens na floresta disposto a “caçar os índios”.

Com a crescente pressão midiática e jurídica, alguns recuaram, mas os indígenas continuam temendo um confronto.

“Estamos há muito tempo brigando, falando, exigindo da Funai (Fundação Nacional do Índio) que tire esses invasores. Fomos lá, e poucos saíram. Agora, a Polícia Federal vai tirar o resto, e se não tirar, nós vamos”, avisou o cacique Beberi Xikrin, outro homem forte da etnia, uma das mais de 300 existentes no Brasil.

COM BOLSONARO, AUMENTA O DESMATAMENTO

A última ocupação ilegal na reserva dos xikrin aconteceu em 2018, mas os ativistas alegam que a situação se agravou com a chegada ao poder de Bolsonaro, favorável à exploração econômica da Amazônia. O presidente foi acusado por diversas ONGs de incentivar atividades ilegais na floresta por sua defesa da mineração nas reservas indígenas.

“As invasões aumentaram com o discurso dele. (Bolsonaro) Fala abertamente em legalizar o garimpo, e os garimpeiros apoiam o governo”, criticou um ativista da região, que preferiu não ser identificado por temer represálias.

Bolsonaro contra-ataca. Acusa as ONGs e potências europeias de quererem que os índios continuem vivendo como “animais nas zoológicos” e defende que a riqueza da Amazônia sirva também para trazer “o progresso” para eles.

Em discurso durante a recente Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro rejeitou o status global da Amazônia. “É uma falácia dizer que é patrimônio da humanidade ou que é o pulmão do mundo”, declarou o presidente, que também pediu respeito à soberania do Brasil sobre o território.

Entre os indígenas afetados, se repete a tese de que não são famílias humildes que acamparam na terra dos xikrin, mas “gente poderosa” que vive a milhares de quilômetros da Amazônia. Eles não têm provas, mas os argumentos coincidem com um relatório da Human Rights Watch (HRW) que denuncia que o desmatamento está sendo promovido por máfias, redes que usam a violência e a intimidação contra quem cruza seu caminho.

E o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), uma organização vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), revelou que a ocupação de terras indígenas aumentou 44% nos primeiros nove meses de 2019 – coincidindo com o governo Bolsonaro – em relação ao mesmo período em 2018.

AS SENTINELAS DA CULTURA

Na pele de Iretõ repousa parte da história dos xikrin. Seus braços estão cobertos por tinta de jenipapo, o fruto amazônico com o qual os indígenas elaboram pinturas corporais. O lóbulo de sua orelha está perfurado e dilatado para enfatizar a audição, e uma faixa de cabelo raspado divide em duas partes sua vasta cabeleira.

Sentinela da cultura xikrin, ela e as demais mulheres da Trincheira Bacajá são responsáveis pelo futuro das novas gerações e, sobretudo, por manter a identidade dos indígenas enquanto a modernidade – junto com a internet -, chama às portas das aldeias.

“Penso no futuro das crianças. Esta área indígena tem que ser preservada para elas”, declarou Iretõ no idioma kayapó, enquanto aperta a mão da neta pequena.

“Os rios estão secando por culpa das fazendas. Não queremos que o branco corte as árvores, então fará muito calor, não haverá ar. Essa é a nossa preocupação”, alertou.

RIOS DE MERCÚRIO

A vida às margens do rio Bacajá segue o pausado ritmo da natureza que a envolve, onde as gargalhadas das crianças se misturam com o silêncio da floresta. Sempre foi fonte de vida para os xikrin, mas suas águas já não matam a sede. Estão cada vez mais turvas, e os níveis de mercúrio aumentaram nos últimos anos devido às minas próximas da reserva. Os homens da aldeia pescam nessas águas, também usadas para o banho.

Um estudo da Universidade Federal do Pará (UFPA) detectou em 2016 um alto nível de mercúrio e metilmercúrio nos peixes deste rio, um dos principais afluentes do Xingu. Nove das principais espécies presentes apresentam níveis acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Além da poluição provocada pela mineração, o ecossistema foi alterado pela usina hidrelétrica de Belo Monte, cuja construção desviou e reduziu drasticamente a vazão do Xingu.

A quantidade, velocidade e nível da água na região dependem agora da operadora responsável pela hidrelétrica. Em alguns casos, a diminuição da vazão chega a 80%, de acordo com um documento elaborado pelo povo indígena Jaruna.

A situação provocada pelo desvio se agrava durante o período mais seco do ano, já que as áreas que costumavam ser inundadas e serviam para a reprodução de peixes agora passam a maior parte do ano completamente secas.

Para reparar e compensar os danos ambientais, o consórcio responsável pelas obras da usina construiu casas de cimento para substituir as antigas ocas indígenas, a pedido dos mais jovens.

Os mais velhos não se habituaram às novas casas e construíram pequenas cabanas de palha nesta aldeia, onde convivem a tradição e a modernidade.

Quando cai a noite, as telas dos telefones celulares iluminam a escuridão – e não as tradicionais fogueiras -, enquanto as araras servem como sistema de alarme, advertindo com seus grasnidos sobre a presença de pessoas desconhecidas ou animais silvestres, como as onças que perambulam pelas aldeias.

Às 22h30 são desligados os geradores de eletricidade movidos a diesel, e os xikrin entram em suas casas. É nesse momento que o inquietante silêncio da floresta se apodera de uma aldeia sempre em alerta para se defender da intromissão do homem branco.