O mal-estar na vacinação

MARIVALDO BERTIOGA

Ansiedade: esse é o sentimento que nos acompanha desde o início da pandemia, e que aflui talvez no medo, no desespero ou na inação. O risco de contaminar-se, os rituais de higienização, as máscaras, a responsabilidade de não contaminar os outros: parentes próximos, idosos. Enfim, toda a rotina de cuidados necessários para evitar as dores de uma morte ainda mais solitária, trágica, na ala isolada de um hospital qualquer, deixou as marcas de estarmos vivendo esta sociedade neste exato momento. Isso me referindo a quem teve o cuidado – houve, é certo, os que se negaram, não apenas expondo a si próprios, mas estendendo o seu desleixo aos demais convivas.

A ânsia pelo pior, pelo inimigo invisível, causou e ainda causa o sentimento de terror que nos acompanha pela manhã, durante todo o dia, nas redes e telejornais, nas conversas, na falta dos abraços e na ausência dos beijos, embora durma conosco. Somos seres inclinados ao sofrimento. A frase não é minha. Nem a ideia: tirei de um livro e, pelo menos para este momento, sinto que concordo com elas. Afinal, por que nos impressionamos tanto com o pior? Que construção é feita para que sintamos que outra sociedade não poderia ser possível?

Era sábado, 24 de julho, havia inúmeras manifestações no país – brasileiros e estrangeiros residentes estavam reivindicando representação quanto ao modus operandi do atual funcionário do Executivo Federal. Sim, aquele que riu dos mortos e fez arminha, aquele que, tendo injetado súmulas de excremento sobre os direitos sociais e ambientais, teve que passar por procedimento hospitalar pela recusa até do próprio intestino.

Eu estava atento a semana inteira, atualizando sites locais, na ânsia para tomar a vacina. Estamos cansados… Queremos sair dessa e logo! Ao final da tarde: baixou! Nova idade, passou o post no aplicativo, e me apressei. Estamos sempre caminhando para algum lugar: decidi caminhar para a vida. Apesar do horário “em cima”, consegui entrar para a fila de vacinação, guardando um sentimento misto de alegria, tristeza e pressa – e um belo cartaz dentro da bolsa. Afinal, era 24J, eu também queria me manifestar.

A enfermeira dava glórias a Deus enquanto organizava a fila e senti, ali, naquela cadeira plástica do Cid Salém, que cuidar de pessoas como forma de ganhar a vida, como profissão, requer um sentimento universal que desconhecemos, que ultrapassa a exaustão e os baixos salários e se manifesta, na maioria das vezes, em satisfação de ver alguém “sair dessa”.

Chegou a minha vez. Dentro da saleta, o braço desnudo, ouço que algo sobre reação, paracetamol ou dipirona. Lembrei: é a hora da foto, a hora e a vez da vacina e do cartaz: puxei e expus para a câmera: #forabozo#genocida#sus e o registro de mais uma vida ceifada precocemente, lembrada pelo nome, dentre as outras mais de 500 mil perdidas nos números. Adivinha?

– O que é isso?, disse a aplicadora, e juro que não estou falando do Golpe. Ao que se seguiu: Não, eu não aplico.

Era obrigação dela, enquanto servidora do Estado, aplicar. Mas, pela razão evidente “não ideológica”, ela prevaricou. Motivo? Arbitrário: não mexo com essas coisas aí. No fundo: aquele dedinho na ferida, cutucando, ressentida na alma profunda, que traz à tona as atitudes mais insuspeitas – ou, como eu imaginava, as mais suspeitas.

Fui salvo por outra profissional, e com a vacina aplicada no braço, eu não queria guerra com ninguém ali… Deixei para a segunda, dia universal de começar – como dizem os coachs.

Eis o registro. Não mato cobras, nem mostro paus. Na era da pós-verdade, apenas filmamos tudo e mostramos que não é fake:

 

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