O Fantasma de Licânia (Parte XXVI) – Clauder Arcanjo

— Você se abaixe, antes que toda Licânia descubra o seu mistério.

A voz de Dandora, firme e dadivosa, fez com que o vulto se abaixasse e, em seguida, se esgueirasse, sorrateiramente, em direção aos fundos do Mercado Público.

O velho relógio da Matriz de Sant’Anna anunciou, com o repique do seu bronze, as doze badaladas da meia-noite. De repente, passos na calçada. Era a Rita Gertrudes, vindo da Missa do Galo. Desta vez, ela não ouviu grunhido nenhum no beco do mercado, como se dera no ano anterior. O Padre Araquento exagerara, ainda mais, na sua homilia natalina contra os ditos pecados da carne, assim como carregara na descrição do fogo do Inferno, e a coitada da beata saiu da igreja com a cabeça em polvorosa. Seguindo-a, uma legião de curiosos; todos na busca de flagrar o novo aparecimento do Fantasma de Licânia.

Tudo em vão. A paz descera sobre Licânia, decorada com um manto de estrelas enxertadas na cúpula do céu dezembrino, tendo como única companheira uma silente, brilhante e quieta Lua.

Na calçada, Dona Adamir e seu Eurico Carneiro desejaram-lhe feliz Natal, enquanto comentavam como a noite estava tranquila.

De quando em vez, um cricrilar ponteava de quietude o rio da noite mansa.

Os casais se recolheram, colocando a filharada para dormir, sob a orientação de que uma das janelas deveria ficar aberta, para permitir a entrada do velho Noel com seu saco de brinquedos.

Até os bêbados, milagrosamente, folgaram da bebida nessa noite. Coisas do Natal.

***

Resolvi, caro leitor, reler o início desta novela:

Dizem que toda cidade que se preza tem que ter o seu rei e o seu fantasma. Como a genealogia da Família Real não passou, nem por longe, pelas ribeiras do Acaraú, o reinado aqui tem sido do sol e, raras vezes, da bagunça organizada. Esta, na cadência do forró arrochado e sob as bênçãos do batismo da pinga braba. No entanto, com relação ao mundo dos fantasmas, a história tem sido bem diferente.

Explico. Mas, antes de dar seguimento, tenho que declarar, para não faltar com a verdade: o mundo dos fantasmas em Licânia se resumia a um único (e mísero) fantasma.

Pois muito bem, o Fantasma de Licânia permanecerá enfiado nas brumas do mistério. Se Acácio não o revelou, quem sou, mero escrevinhador de província, para quebrar tanto encanto.

Deixo para a posteridade este cadinho de enigma.

***

Enquanto isto, uma chuva fina caía sobre o solo generoso de Licânia, como se benzesse a província com uma dádiva dos céus.

Na esquina do Mercado Público, o filósofo João Américo, em meio às suas elucubrações etílicas, sempre na busca de salvar do olvido as várias páginas dos velhos tomos licanienses abduzidas pela força do Além, “privando-nos da verdade histórica e do sumo antropológico do fato”, deu pela saída furtiva de um casal no rumo do Serrote da Rola. Com a sua miopia, ele não conseguiu distingui-los bem, contudo, se sua leitura da cadência dos passos e do peso dos anos não o enganara, ele juraria que seria o mestre Dandora com a M…

— Valha-me, Senhora Sant’Anna! Corram, antes que Licânia descubra esse mistério.

FIM

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]