O Fantasma de Licânia (Parte XXIV) – Clauder Arcanjo

— Senhor prefeito, Companheiro Acácio está deixando a cidade! — gritou, escandalosamente, o Dizim, seu secretário extraordinário das causas especiais.

— E eu com isso? Agora vou ter que dar conta, além das verbas que a oposição afirma que eu desvio, da vida de todo filho de uma ég… — calou-se, ao se dar conta que se tratava do investigador que o município contratara, a peso de ouro, para descobrir o paradeiro d’O Fantasma de Licânia.

— Depressa, Dizim, me chame o Parnir, o nosso secretário de transportes. Diga que ele venha rápido, precisamos investigar esse abandono de objeto contratual. Já empenhei a verba de três pagamentos no demonstrativo de despesas do erário no mês anterior. Este baitinga não pode sair assim de Licânia sem mais nem menos. Temos um contrato. Entendeu, seu Dizim? Um contrato! — esbaforido e nervoso, o prefeito foi logo saindo do prédio da prefeitura.

Enquanto isso, Parnir dormia um sono inquieto no seu birô. Explico. Na noite anterior, ele enfiara a cara numa cachaça nova que chegara da Serra da Meruoca na bodega do Paulo Amaro. A peçonhenta descera-lhe redonda, mas lhe deixara com uma ressaca do cão nesta manhã, sem mencionar a diarreia com cólicas homéricas.

— Depressa, Parnir, você tem que ir com o senhor prefeito ao encontro do Acácio Holmes — foi logo ordenando o Dizim, mal entrou no recinto.

— Daqui só saio para a privada — disse Parnir, enquanto corria, já desabotoando as calças, para o banheiro da prefeitura.

No caminho para a latrina, um rastro fétido de gases intestinais explicou tudo. Dizim coçou o quengo e, sabiamente, decidiu conduzir, ele mesmo, o carro do alcaide na missão à pensão do Raul. Antes de sair, lembrou-se de algo e soprou, à porta do WC:

— Se precisar de coveiro, conheço um bastante competente. Especialista em enterrar carniça, amigo Parnir.

Dizim ainda pôde captar, entre bramidos de dor pelos espasmos da cólica e um jato pútrido evacuado, um zilhão de palavrões endereçados por Parnir a toda a sua árvore genealógica, começando pelo ataque à sua genitora.

— Vamos, seu prefeito! Levarei o senhor, pois o Parnir está em um compromisso indelegável. Questões intestinais, sabe? — anunciou Dizim, enquanto entrava no carro oficial.

 

***

 

— Mestre Dandora, quer ir comigo? Você se mostrou um fiel assessor, outros desafios nos aguardam. Um assistente de qualidade sempre me será útil em futuras missões — falou Acácio para Dandora, enquanto preparava a maleta de viagem. Sobre a mesinha do quarto, próximo à quartinha de água serenada, a obra O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson.

No canto, próximo à porta, a figura de Raul, a palitar os dentes e a mordiscar saudades. Raul passara, com o tempo, a admirar aquele cinquentão; crédulo e puro, segundo sua avaliação. Nunca se ligara com os tipos que passavam pela pousada, contudo com Acácio fora diferente. Como se um investigador profissional trouxesse um halo de grandeza à sua hospedaria. Mas, sabia, não fora só isso. De início, estranhara tantas rabugices e manias, porém, semanas de observação depois, vira-lhe uma singular habilidade: respeitar e dignificar o outro. Naquelas paragens, tal atributo era raro, raríssimo.

Quando Dandora fez menção de responder ao convite de Companheiro Acácio, Raul inquiriu-lhes:

— E o Fantasma?

— Sim, e o Fantasma? Você tem um compromisso com a municipalidade, senhor Acácio Holmes, lembra?

O prefeito atropelou o diálogo com seu ar de autoridade constituída. Acácio, Dandora e Raul entreolharam-se e, silenciosamente, deixaram o recinto.

— Volte aqui, Acácio. Eu exijo respeito. Volte, isto é uma ordem! — decretou, quase aos gritos, o prefeito.

Lá fora, os dezoito legionários perfilados. A notícia correra rápido. Cabo Jacinto Gamão, como Grão-mestre Supremo da SYL, à frente do esquadrão.

Companheiro Acácio saudou-os a todos, e proferiu a decisão:

— O caso está encerrado. De agora em diante, legionários da SYL, outras missões os aguardam. Licânia é um belo lugar e, a partir de hoje, conta com um valoroso grupo de proteção. A gente se encontra por este mundo de meu Deus. Obrigado, de coração.

Depois dessas palavras, Acácio abraçou cada um dos meninotes. Reservando um abraço especial, num misto de tensão e elegância, para o Cabo Jacinto.

— Peço-lhe mais um favor, cabo.

— Sou todo ouvidos.

— Gostaria de sair da cidade em paz.

O Grão-mestre Supremo da SYL levou a mão direita ao seu “justiceiro” cacete de jucá:

— Ai daquele que se intrometer na sua caminhada, Companheiro Acácio — disse isso alisando o fiel companheiro, polido de tanto amansar bêbado metido a brabo daquelas ribeiras.

O prefeito e seu secretário saíram da pensão, querendo puxar ainda conversa com o nosso Holmes de Licânia, Cabo Jacinto deu um chega-prá-lá nos dois.

Enquanto isso, os legionários da SYL formaram uma barreira de proteção para a saída segura do nosso investigador.

Companheiro Acácio deixou, em paz, a cidade de Licânia, acompanhado por Aristides, Dederardo e Gatinho até a última curva do rio. Enquanto isso, nos arvoredos ao longo da estrada, os sanhaços, os corrupiões e os cabeças-de-fita trinavam gorjeios de saudade.

 

***

 

E acaba assim a novela O Fantasma de Licânia?

Calma, leitor, deixe-me, pelo menos, enxugar as lágrimas; essa sua saudade de Acácio também é minha.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]