O Fantasma de Licânia (Parte XXIII) – Clauder Arcanjo

— Acorde, Companheiro Acácio!

Em torno daquele corpo imóvel e pálido, o silêncio dos dezoito legionários da Scotland Yard de Licânia. Como não obteve resposta de Acácio, o Cabo Jacinto Gamão sacou do seu cacete de jucá, fazendo menção de usá-lo.

Mestre Dandora, sabedor da compulsão de Cabo Jacinto em acordar bêbados com chá de surra de cacete de jucá, cuidou de salvar a pele do nosso investigador fantasmal, conclamando-o:

— Ou se levanta ou assumirá as consequências de um corpo moído, mestre Acácio.

— Deixem-me. Preciso de paz e reclusão — respondeu Acácio, enquanto se levantava.

— E o Fantasma? — inquiriu-o o corpo de legionários, em coro.

Companheiro Acácio correu o olhar sobre cada um dos presentes, banhando-os com um halo de brandura e serenidade. Ao tempo em que cuidava de ajustar a roupa, mal posta no corpo atarracado, devido ao súbito desmaio.

— O Fantasma de Licânia?!…

— Claro, Companheiro. E haveria outro? — perguntou Dandora, importunado.

Acácio deu alguns passos em torno do grupo, de quando em vez elevando a vista para o horizonte plúmbeo. De repente, como se voltasse a si, asseverou com sua voz embargada pela emoção:

— O Fantasma é caso meu. Retornem para os seus afazeres. A cidade não precisa de heróis, mas, sim, de homens de bem. Sim, daqueles que se entregam às tarefas rotineiras, como a levar o pão e o leite para a casa de todos, a plantar e colher o feijão e o milho para homens e bichos, para cultivar a bonança e educar os filhos de Licânia. Entenderam-me? — anunciou, quase messianicamente.

— Será que na queda, mestre, você não bateu com a cabeça no chão e ficou…

A palavra não se fez presente nos lábios trêmulos de mestre Dandora; havia nele, desde a longínqua infância, o pavor da loucura. Loucura que acometera o seu avô materno, deixando-lhe triste ao sabê-lo retido na Casa de Orates. Para nunca mais voltar para casa. Saindo de lá para a Casa dos Mortos.

— Não estou de parafuso frouxo, se é isso que você imagina, amigo Dandora. Apenas, repito, preciso de paz e reclusão. E, mais uma vez, afirmo-lhes: de agora em diante, diletos legionários, o caso é pessoal. Por consequência, libero-os de suas funções. Voltem para suas casas e… aguardem. Tudo chegará a bom termo.

Professou tais palavras, cofiou seu bigode escuro e bem cuidado, e tomou o rumo da Igreja Matriz. De início, ninguém teve coragem de segui-lo. As beatas estranharam tal presença na igreja, porém nada disseram, tão somente arregalaram os olhos incrédulos, a debulharem seus terços com mãos nervosas. O sacristão, ao perceber a presença de Acácio na nave, levou a notícia ao padre Araquento no altar. Este, irrequieto, cuidou de encerrar logo a missa, incomodado pela presença de fiel tão inesperado.

Finda a celebração, a igreja ficou vazia, contudo Companheiro Acácio não arredava o pé do banco da frente. Ajoelhado, com a cabeça baixa, os lábios a pronunciarem uma prece inaudível.

Com pouco, uma senhora sentou-se ao seu lado, dando início a uma longa conversa.

 

***

 

Enquanto isso, do lado de fora, uma multidão se aglomerava no pátio frente à Matriz de Senhora Sant’Anna. O desmaio de Acácio, a decisão de liberar os legionários, o pedido de reclusão pessoal, o anúncio de enfrentamento entre ele e o Fantasma… tudo isso correu feito fogo em pasto seco pelas ruas da cidade em menos de meia hora. Velhos, meninos, crentes, infiéis, bêbados, pias Filhas de Maria, os escoteiros da Pedra da Luzia, os marchantes, as meninas do Caneco Amassado, os partidários do prefeito, os oposicionistas… enfim, todas as tribos fizeram-se presentes.

Anoiteceu. Uma noite fria e escura. Estranhamente silente. Os pássaros aquietaram-se nas copas dos benjamins, das algarobas e dos tamarineiros sem o trinar costumeiro, os bichos recolheram-se aos currais sem zurros e mugidos, a criançada atendeu ao chamado do sono, sem protestos e reclamações. Licânia, numa paz armada e inquieta, como se sujeita a um…

Um grito pavoroso quebrou a quietude das horas.

Foi o bastante para tanger toda a multidão, que se reunira frente à Matriz, para as suas residências.

 

***

 

À meia-noite… Sim, à meia-noite, pois o relógio da Matriz de Sant’Anna iniciara suas soturnas e pontuais doze badaladas, um casal foi visto pelas ruas.

Infelizmente, ninguém os identificou, pois todos os habitantes de Licânia estavam metidos por debaixo de seus lençóis, plenos de medo, pavor e agonia.

E o Fantasma?

Calma, leitor, logo nós saberemos do seu paradeiro, essa angústia também é minha.

 

Clauder Arcanjo. contato: [email protected]