O Fantasma de Licânia (Parte XXI) – Clauder Arcanjo

Para alguém

(porque há sempre um alguém que crê na sorte do autor)

 

Sinto que o tempo passa, e este Fantasma de Licânia anda fazendo troça de mim. Não só de mim, de Acácio e… de você, fiel leitor. Sim, de você também, pois há vinte capítulos você acompanha a saga dessa assombração das ribeiras de Licânia, e ela — neste vai, não vai; neste aparece, não aparece — vem tirando o juízo e a paciência de muitos. Por isso, e isso me basta, declaro aqui meu “chega!”. Chega de procrastinação, chega de enrolação! Vamos passar esse fantasma a limpo; e passar a limpo é desvendar o seu mistério.

Siga-me, leitor, o capítulo promete. Não, não tenha medo; melhor, de medo todos nós temos o seu cadinho. Controle-o, deixando-o na conta do administrável, e a vida segue o seu passo; de forma claudicante, mas segue. Como saber se ele cabe nessa medida?! Digamos que medo administrável é aquele que nos dá uma frieza no estômago, contudo não chega a molhar-nos as calças.

Seu medo, acredite, é necessário para dar sabor à leitura de algumas páginas que virão.

 

***

 

No outro dia, sem reparar no sol nem nas nuvens, nosso Acácio Holmes cuidou de dividir os trabalhos. Os dezoito legionários foram destacados, em grupos de três, para missões específicas, com orientações detalhadas.

Um dos trios foi orientado a visitar as matas na cercania da pequena cidade. “Se ele se esconder na mataria, com certeza, acreditem, ele há de deixar escapar algum sinal.”

Outro grupo foi para o Caneco Amassado, prostíbulo do lugar. “Em média, os homens, quando nos braços do prazer, deixam escapar alguma de suas façanhas, além das sexuais. Entrevistem todas as meninas, sem esquecer é claro da gerente do lugar”.

O quarto trio seguiu para acompanhar o dia a dia do Mercado Público. “Reparem no comportamento dos feirantes. Em especial, naqueles mais chegados a um dedo a mais de prosa. Procurem limpar o sujo da mentira; sempre, ao narrarem a verdade, acreditem, eles resolvem decorá-la com alguns brilhos de invencionices. Como fazê-lo? Acredito em vocês, vocês saberão. Avante!”

O quinto ficou com a área no entorno da Matriz de Sant’Anna. “Os pecadores sempre se voltam para os santos. Este Fantasma de Licânia pode ser um destes crentes em Deus. Olho aberto nas pias Filhas de Maria, no sacristão e até no senhor pároco. Todos, até prova ao contrário, podem ser o tal suspeito.”

O sexto trio — acredite, leitor — nem eu sei para onde rumou. Depois que todos os outros quinze legionários saíram em missão, Companheiro Acácio ficou com os últimos: Aristides, Dederardo e Gatinho; encostou a porta do quarto da pensão, e nem ao menos eu, narrador desta novela, pude ouvir sua orientação àqueles três.

Revoltado, confesso aqui, quis largar esta noveleta; porém, pensei, não se faz literatura somente com revolta. A literatura nasce da persistência, da dedicação cega e desinteressada, de uma fome imorredoura e indescritível de criar, de conceber e de narrar pelo narrar. Em honra de ninguém, a não ser pela honra do que está sendo fabulado.

Voltei, em passadas céleres, para dentro da pensão. Tarde demais: o quarto estava vazio. Procurei-os nas outras dependências da pensão, no muro dos porcos, nas ruas próximas… nenhum sinal deles.

Quando fiz a volta no outro quarteirão, dei com a figura de Dandora. Sem medir palavras, segurei-o pela gola da camisa e despejei:

— Por onde anda aquele besta do seu chefe, mestre Dandora?

— Em primeiro lugar, largue logo a minha camisa. Isto, se não quiser levar um bofete no meio desta cara de narrador abestalhado. Em segundo lugar, o narrador sabidão aqui é você. Se não sabe onde enfiou o seu herói, saberei eu? Ora, tenha dó! — gritou-me, com a boca a três centímetros dos meus olhos assustados.

Percebendo a besteira em que havia me metido, cuidei de recuar, mais do que depressa:

— Peço-lhe desculpas, seu Dandora. É porque esta novelinha tem me tirado do sério, sabe? A coisa, agora, saiu do meu controle. Explico. Programei uma missão para Acácio neste vigésimo primeiro capítulo, fundamental para o desfecho de ouro da trama, e eis que ele me desaparece com um trio de legionários. Some, e eu fico aqui, sem poder seguir em frente com esta novela policial. Ô meu Deus! Ô meu Deus! Diga-me, meu Deus, onde se encontra Acácio! Peça, meu Senhor, para ele… — e sem conseguir prosseguir, engasguei-me com um choro imprevisto. Um chororô daqueles de lágrimas volumosas, de cortar as palavras da garganta, e de afrouxar o coração do homem mais impiedoso. O que não era o caso de mestre Dandora, homem leal, servidor e de bom de coração. Ao me ver em lágrimas copiosas, Dandora abraçou-me e fez-me sentar no banco da praça.

— Calma, escritor. Nada está perdido. Suspeito, pelo pouco que já conheço de Companheiro Acácio, para onde ele seguiu. Darei notícias. O melhor é você parar por aqui, se recolher e aguardar notícias minhas. Agora, eu terei que ir. Darei notícias. Vá para casa.

 

***

 

E ir para casa, para um escrevinhador de província, significa, leitor, ficar por aqui. Em letras claras: fechar o capítulo, apesar da alma opressa e da pena trêmula.

Voltarei, porque há sempre um alguém que crê na sorte do autor, bem como na boa sorte da trama.

Até mais.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]