O Fantasma de Licânia (Parte XVIII) – Clauder Arcanjo

Para o meu eu escritor

(porque este capítulo tem o drama do verbo indisposto)

 

Quando Acácio e Dandora entraram, às carreiras, na sala da pensão do Raul, deram pela presença do senhor prefeito; sentado na velha poltrona dos hóspedes, a sorver uma xícara de café donzelo recém-preparado pela casa.

— Vocês estão a perseguir o fantasma, meus senhores? — inquiriu-os, com um riso de mofa nos lábios grossos e com os olhos de raposa por trás da xícara.

— Sim, senhor prefeito. Apenas voltamos para casa, a fim de nos armar com o pó do bico da coruja albina. Ele é essencial quando queremos localizar um espectro que se esconde no meio da madrugada — disparou mestre Dandora, com um desembaraço fantasmal incomum.

Companheiro Acácio, com os olhos esbugalhados, já sentira que a carreira desembestada deixara-lhe com a voz presa e as pernas da calça úmidas. “Preciso cuidar desta minha próstata!”, pensou.

Nisto o senhor prefeito se aproxima do nosso Holmes de Licânia, e, antes de inquiri-lo, foi surpreendido com o grito da multidão lá fora:

— O fantasma também passou lá em casa!

Foi o suficiente para uma confusão dos diabos se instalar na frente da pensão.

De quando em vez, um bebum gritava:

— Queima, raparigal!

Por entre tamanha gritaria e confusão, o chefe de gabinete pede para o chefe da municipalidade sair pela porta dos fundos, evitando o encontro com o povo:

— As reformas que o senhor vem empreendendo, prefeito, ainda são muito incompreendidas pela população. Lembre-se da última chuva de ovos podres que o saudou na inauguração do novo mata-burro na localidade de Santa Rita! O senhor se lembra, não lembra? — cutucou o chefe de gabinete.

Foi o suficiente. O alcaide, até hoje, não ingere mais ovos nas suas refeições, tal foi o trauma advindo daquela chuvarada de ovos.

— Prefeito, cuidado com os porcos! — advertiu seu Raul.

Qual nada! Fizeram-lhe ouvidos moucos. O prefeito e o seu assistente tinham tanto medo do povo que enfrentaram, de peito aberto, a fedentina da pocilga, bem como a fúria da porca mãe, sempre a postos para proteger a vara de porquinhos.

— Por aqui, mestre Acácio! — conduziu Dandora, encaminhando nosso Sherlock Holmes para o fundo do quarto grande, ainda envolto na escuridão.

Não se sabe como, mistérios da vida, Companheiro Acácio foi puxado por alguém (de início, pensara ser o seu fiel escudeiro) para dentro do velho guarda-roupa. Um perfume suave tomou-lhe o olfato e despertou-lhe a libido. Com pouco, uns lábios quentes se achegaram ao pescoço de Acácio. Arrepiado e com o negócio em riste, caro leitor, nosso investigador não tinha mais condições físicas nem mentais de pensar em fantasma nenhum. Entregou-se àquela “desconhecida”.

Na sequência, Acácio Holmes abre os lábios em busca do beijo da… e foi surpreendido por uma cacetada no meio dos cornos.

Ao se recuperar do “desmaio”, largado no fundo da rede do quarto da pensão, nosso Holmes das ribeiras do Acaraú não sabia se tudo aquilo fora sonho ou realidade. Quis interrogar Dandora, contudo Dandora nada vira, apenas, ressaltava, conduzira-o para o interior do velho quarto de hóspedes, enquanto ia cuidar de dispersar a multidão.

Caro leitor, confesso aqui que aquele incidente (sonhado ou real) pusera o nosso herói nos papos da paixão. Naquela noite, o coitado já não dormira. Inquieto e de olhos baços, Acácio por diversas vezes incomodara os hóspedes querendo entrar no velho guarda-roupa em plena madrugada. Digo incomodara, porque a pensão, devido à fama do fantasma de Licânia, estava um verdadeiro tear de redes. Dezenas delas, grandes e pequenas, a se cruzarem: da esquerda para a direita, algumas junto às telhas e outras quase ao nível do chão, formando uma imbricada tessitura, tão complexa que o dédalo de Ariadne, frente aquilo, era fichinha.

No outro dia, cedo, no café da manhã, Acácio era a própria expressão do lesado. Os olhos perdidos numa lonjura de infinitos tantos, a boca semiaberta como se com uma palavra-rosa presa na garganta, as mãos trêmulas, os passos miúdos e em câmara lenta, os cabelos (apesar de ralos) em incomum desalinho. Sentara-se à mesa, e de nada se servira. Em vão seu Raul tentara lhe trazer de volta. Falara do resultado da última partida do Licânia Sport Club, uma acachapante goleada em cima do Flamüller, pois sabia da sua paixão pelo esporte bretão. Nada. O caixeiro Severino Malafarta, preocupado com o estado de letargia do novo amigo, começou a recitar, de cor, alguns sonetos de Augusto dos Anjos. Os versos do Eu não mexeram com um músculo sequer de sua face pálida.

No entanto, caro leitor, quando o pequeno rádio da cozinha encheu o ambiente com “lábios que beijei, mãos que eu afaguei…”, nosso herói levantou-se, abriu os braços em direção ao velho guarda-roupa do quarto grande e… caiu no choro. Pranto farto, dorido e sem tréguas. Enfim, o nosso herói estava totalmente apaixonado.

Por quem?! Ora, ora, desatento leitor, pela expressão do seu fiel escudeiro: apaixonado pela “Fantasma de Licânia”.

E por essa, confesso perante Deus e os homens, até este humilde escrevinhador de província não esperava.

Fico, então, por aqui, preciso de um tempo para me recuperar dessa intromissão fantasmal feminina. Isto não estava nos meus planos. Não, decididamente não estava.

Bom domingo. Não sei se no domingo que vem eu voltarei. Estou, com o verbo, indisposto.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]