O Fantasma de Licânia (Parte XVII) – Clauder Arcanjo

Para os leitores de literatura de terror

(porque este capítulo tem fantasma em demasia)

 

Depois de tudo, a noite caiu, e Licânia mergulhou na quietude da madrugada com seu punhado de sortilégios.

Aproveito esta pausa para tecer algumas ponderações, pois decorridos mais de dezesseis capítulos, acredito, posso me considerar mais próximo de você, caro leitor.

Não cabe pausa nem muito menos muita intimidade nesta nossa relação!?…

Ora, você está me parecendo muito rabugento, irritante leitor! A literatura é, antes de tudo, uma casa de papel onde se aprende a ver, a ler e a encarar a vida pela fresta da janela-prosa do escrevinhador!

No entanto, pouco me importa, se você lerá ou não o que escreverei agora. É testemunho meu, preciso externá-lo, antes que enlouqueça.

Sigamos, pois.

Narrar as venturas e desventuras de O Fantasma de Licânia tem se revelado, pelo menos para mim, um dos maiores desafios da minha curta e, até então, pacífica carreira de escritor de província. Contos, crônicas, aforismos, poemas, resenhas literárias, romances… Por tudo passei incólume e, creia-me, com um certo ar de regozijo e de felicidade. No entanto, cá estou nesta noveleta, preso a um espectro que não se apresenta em sua plenitude, fazendo troça de mim, bem como do meu herói e da minha meia dúzia de fiéis leitores.

Encontrava-me assim, insone e macambúzio, tomado por uma vontade de largar esta história e me aposentar de tão difícil arte de narrar, quando fui surpreendido por alguém nos punhos da rede.

“Levante-se, deixe de frescura e de tantas digressões literárias, Clauder Arcanjo! E cuide de afiar a pena, narrando tudo e não perdendo nada do que o espera.”

 

***

 

— Seu Acácio, o Fantasma de Licânia passou lá em casa esta madrugada e roubou a nossa única galinha. Ajude-me, meu senhor! Eu estava cevando a bichinha para um frango à cabidela quando da visita de nosso compadre na semana que entra — clamou um homem de certa idade, a sacudir, em penoso desespero, a rede do nosso herói (sim, Acácio Holmes se encontrava dormitando na pensão de seu Raul, e o dia mal se anunciara por entre as carnaubeiras da várzea do Acaraú).

Levantou-se pronto (como todo investigador que se preza) a colher as provas no local do “crime”. Quis sair tão rápido que quase se fez um investigador de ceroulas.

Salvou-o, mais uma vez, o pragmatismo do seu fiel assessor, o mestre Dandora:

— Companheiro Acácio, componha-se. Há tempo de plantar, de colher e de se vestir. Caso não, você será a próxima vítima das línguas afiadas das pias Filhas de Maria.

Foi lhe dizendo isso e jogando-lhe, na cara, as suas roupas. Composto e recomposto, seguiram, sem mais delongas.

Mal entraram na rua, uma senhora foi ao encontro deles:

— Seus investigadores, o tal fantasma levou o meu marido. O coitadinho saiu de casa na boquinha da noite para comprar um cigarro… e não mais voltou. Por favor, achem ele para mim!

— Calma, minha senhora! Veremos o seu caso. Dandora, anote o endereço desta senhora.

— Sei que peguei pesado com ele, reclamando das suas cachaças e das suas raparigagens… mas quero ele de volta, com todos os seus defeitos, de volta. Eu amo aquele desgraçado, seu Acácio. Eu amo aquele desgraçado! — declarava, enquanto afundava-se em copioso choro, com a cabeça encostada no ombro de Companheiro Acácio.

— Volte para a sua residência e nos espere. Prometo cuidar do seu caso. Agora, vá! — pediu-lhe nosso Sherlock Holmes de Licânia.

Quando dobrou a esquina do Mercado, os nossos dois heróis foram surpreendidos por uma multidão em frente à bodega do Edir.

— Lá vem eles! — gritou o Zé Aguiar.

Nisto, leitor paciente, a multidão voltou-se para o nosso Holmes e seu fiel assistente. Com pouco, todos, quase uníssonos, gritaram:

— O fantasma também passou lá em casa!

Na mesma pisada que vinham, nossos astutos heróis voltaram-se no rumo de casa (melhor, da pensão do Raul).

— Nenhum fantasma que investiguei tinha o condão da ubiquidade! Isso está me cheirando a farsa, fiel Dandora! — defendeu Acácio, enquanto metia o pé na bunda, visto que a mundiça corria, feito uns loucos, atrás deles.

 

***

 

— O que é aquilo, seu João Américo? — indagou Rita Gertrudes, ao presenciar tamanha correria pelas ruas da cidade.

— Antes, aprendi, dava-se um reino por um cavalo. Em Licânia, onde já se viu, estão dando até a bunda por um fantasma — professou João Américo, sobraçado às suas divagações anarco-filo-etilosóficas.

— Seu velho esculhambado! — disparou Rita Gertrudes, enquanto recompunha, sobre a face enrugada, o seu fino xale negro.

 

***

 

Não se preocupem, a nossa dupla de heróis está a salvo. E voltará na semana próxima. Com ou sem fantasma, eu prometo.

Bom domingo.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]