O Fantasma de Licânia (Parte XVI) – Clauder Arcanjo

Para os leitores da aventura

(porque este capítulo tem ventura)

 

— Cadê o Fantasma de Licânia?

Nada. Apenas os minutos se passavam. Sobre os presentes, tão somente a noite com seu manto de silêncio. Como um véu azul pespontado por brilhantes estrelas.

— Este filho de uma égua está fazendo pouco de nossa cara! — disparou Seu Miguel Frederico, armado há tempo com um cacete maior do que o de Cabo Jacinto Gamão.

De repente, uma nuvem de poeira no horizonte.

— São Braz, São Braz!… — rezaram, contritas, as beatas no Largo da Matriz.

Com pouco mais, entre o torvelinho se ouviu um relincho de jumento desembestado: “Onc! Onc! Onc! Onc!…” Sem mencionar os peidos fétidos.

— Se ficarem no meio, fiquem logo sabendo, ele passará por cima. O bicho é bruto, e está de cacete armado. Como se doido de tesão à procura de jumenta nova no cio — deduziu, do alto da sua sapiência jeguiana, o Paulo Bodô, que, prevenido, já se atrepara no alto do maior tamarineiro de Licânia.

— Vixe, minha Senhora Sant’Anna! Guardai-nos. Eu não quero nem ver essa esculhambação — disse uma das beatas, sobraçada com seu missal, enquanto aguardava o desenlace com os olhos bem arregalados.

Foram salvos do atropelamento jumentístico pela caridade de Maria Abógada. Esta, solícita e caridosa, cuidou de ficar à frente do jumento desembestado com uma bacia de milho debulhado. Nos lábios, uma reza em espanhol, entremeada por uma ladainha do tempo do Império.

— Serenai, serenai, serenai. El mundo es de Dios, de los hombres y de los animales. Serenai, serenai, serenai. El pan es del hombre y el maiz de los animales.

O jumento deu uma freada tão colossal que foi terra parar na calçada da residência do Eurico e de dona Adamir, duzentos metros à frente.

Depois disso, o redemoinho serenou, tomando o rumo do Serrote da Rola, de onde adviera. Ao fim e ao cabo, aquilo resultara num bem enorme à cidade, pois recolhera todo o lixo das ruas, levando tudo para as quebradas da serra.

— Nunca vi varrição tão boa, meu povo! Também, com um prefeito incompetente como o nosso, só mesmo um vendaval da moléstia para limpar todos os becos e ruas de Licânia! — vomitou, tangido pelo fogo da cachaça nova do Edir, o Zé Aguiar.

— Calado, seu desgraçado! Não se esqueça de que nossa oficina tem um contrato, com exclusividade, para reparo dos carros da prefeitura, homem de Deus! — advertiu a esposa.

— E pra que me serve tal coisa, me diga, mulher?… Se há meses não vejo a cor do dinheiro. O prefeito é competente, competen-tís-si-mo, só rouba para ele mesmo — continuou com seu desabafo o Zé Aguiar.

Só se aquietou quando a mundiça o chamou para mais uma rodada de pinga em comemoração ao enterro da ventania.

 

***

 

Enquanto isso, na sede da prefeitura, dava-se uma reunião extraordinária do senhor prefeito com o seu secretariado.

— Em números redondos, senhores secretários e excelentíssimo prefeito, nossa receita quadruplicou nos últimos dois meses. Na primeira quinzena, claro, o caso nos assustou. Com a aparição do tal fantasma, a cidade parou, e a arrecadação despencou. Contudo, com a chegada do investigador e o início da caça ao indigitado amigo do Além, a nossa urbe amada passou a receber uma legião de curiosos, pesquisadores, amantes do desconhecido; sem falar na trupe de gente desocupada que veio de roldão: novos ambulantes, raparigas novatas para o mais antigo negócio do mundo, aprendizes de detetives, mascates. Por sua vez, meus senhores e minhas senhoras, uma penca de repórteres das rádios e tevês da capital passou a cobrir todos os nossos eventos. Enfim, estamos bombando, ou como dizem, Licânia viralizou nas redes sociais. Isto, claro, turbinou a venda da cachaça nos bares e botecos, dos tira-gostos para manter em pé tamanha legião de bebuns, dos leitos na única pousada da cidade, que está com rede reservada até o final do próximo ano.

— E se o fantasma não existir, seu secretário de finanças? — inquiriu Galvino Vasconcelos, o Ouvidor do município.

— Se isso ocorrer… melhor nem pensar!, acreditem, para o bem de Licânia, o melhor seria que cuidássemos de inventar, rapidamente, um outro — advogou o homem das finanças, enquanto levava os olhos para o cadáver ambulante do Genésio Costafina, administrador do cemitério público municipal. Genésio, coitado, desprovido de carnes (desde que um câncer agressivo fora descoberto no seu ânus, e, com pouco, avançara, celeremente, de fiofó adentro), já se via “nomeado extraoficialmente” como candidato natural ao valioso cargo fantasmagórico.

— E se decretarmos o tal fantasma patrimônio cultural de Licânia? — defendeu, do alto do seu metro e cinquenta, o Chico Tripafina, secretário de cultura.

Houve um início de balbúrdia no recinto, o senhor prefeito cuidou de puxar as rédeas do assunto, defendendo, como encerramento da pauta:

— Este nosso contratado, o senhor Acácio, não me parece um investigador de escol. O cabra vem apanhando mais do que burro chucro. É ou não é verdade?!… No passo que ele vai, caros assessores e assessoras, o desfecho do mistério do Fantasma de Licânia não deve nos preocupar. No entanto, marquemos uma reunião com ele, quero ter um particular com este tal Sherlock Holmes de Licânia — defendeu, enquanto dava a reunião por finalizada.

 

***

 

Voltemos ao palco da entrada do jumento de vara em riste.

“Ui! Ui!…” Desculpem-me as beatas e os beatos, mas todo novelista tem que ser verdadeiro no narrar do causo fabulado. Ou ele se mantem fiel à fidedignidade (no caso em pauta, o troço do jegue estava mais duro do que o cacete de jucá do Cabo Jacinto Gamão), ou ele resvala para o falso, caindo na vala do reles e somenos anedótico. Pois bem, continuemos.

João Américo, que a tudo assistia de perto, em meio às suas elucubrações etílico-filo-sócio-historiográficas, garantiu que, dali, é que sairiam diversas páginas para os futuros tomos históricos da ribeira do Acaraú.

— E nada, eu garanto, será mais abduzido pela força do Além, privando-nos da verdade verdadeira e do sumo antropológico do fato — vituperou João Américo, enquanto o Padre Araquento e o sacristão se aproximavam do cenário em pauta.

As pias Filhas de Maria acorreram ao velho pároco:

— Seu padre, a Santa Madre Igreja tem que agir.

O representante de Deus nas terras de Licânia estava mais preocupado em encontrar um modo de arrecadar alguns cobres a mais para a “reforma do telhado da Matriz”, obra que já se arrastava a um decênio.

— Filho e filhas de Deus, é hora de nos voltarmos, cada vez mais, para o mundo de Deus. Como Ele pode cuidar de vocês, se vocês não cuidam da casa d’Ele? Viram o milagre de Deus! O fantasma sumiu e se transformou num jumento. Obra de quem? Obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Quanto maior o milagre, maior deve ser o donativo para cobrirmos a casa do Senhor, a casa da mãe de Maria — discursou entre os fiéis. Pouco mais, abaixou o rosto e recolheu-se, fingindo mergulhar em pias orações.

Raimundo Sacristão, com a cruz de madeira, passava a sacolinha a recolher doações para a Santa Madre Igreja.

Nisto, um outro relincho. Desta feita, muito mais forte e afinado, a assustar todos os presentes.

— Agora é o Fantasma de Licânia, minha gente! O bicho vem que vem! Valei-me, Nossa Senhora! — gritou o Gazumba, e pernas pra que te quero.

O Padre Araquento se esqueceu de tudo, da fé e do vil metal; e entrou, desesperado, na bodega do Edir. Sobre o balcão, a pinga dobrada do João Américo. O padre levou-a à boca funda, sorvendo-a de um gole só.

— É a minha água benta, seu padre! — avisou o João Américo.

— Nem só de água benta vive o homem, filho de Deus, mas de tudo que sai e entra na sua…

Nisto, um relincho dobrado. Todos acorreram ao descampado da Avenida São João.

E, pasmem, o que era tido como fantasmal transmutou-se em amor de bichos em plena praça. Um casal de jegue a copular com uma volúpia danada.

Dentro das casas, as pias filhas de Maria rezavam, enquanto acompanhavam tudo por entre as venezianas. Com as carnes em fogo, e uma vontade descomunal de serem mulas.

— E cadê o Fantasma de Licânia, Clauder Arcanjo?

Calma, calma. A vida continua. Prometo que darei notícias do desaparecido fantasma no meu próximo capítulo.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]