O Fantasma de Licânia (Parte XV) – Clauder Arcanjo

 

Para os pacientes leitores

(porque este capítulo pede pausa)

 

— Em vez de o Fantasma sofrer ou pelo menos ser desmascarado, escritor Clauder Arcanjo, o que se vê e lê, aqui nesta novela, é o sofrimento contínuo do coitado do Companheiro Acácio, designado por você como o Sherlock Holmes de Licânia! — desabafa Raimundo Antonio, um dos meus assíduos leitores.

Resolvo, então, pedir uma pausa para os meus pacientes leitores e ter uma prosa cá comigo mesmo.

Sim, o momento é de introspeção sócio-pedago-reflexivo-filosófica, parafraseando o mestre João Américo.

O que faz um escritor entrar numa narrativa e criar um grupo de personagens? Eis a primeira pergunta que dever nortear esta conversa de mim para mim mesmo.

O meu lado leitor dá um salto sobre a tela do computador e me responde:

— Só se narra aquilo que pulsa dentro de nós como fogo vital. Caso não, creio, o escritor verdadeiro há de preferir a morte.

O meu lado escritor, tomado de uma lassidão deveras singular, inquieta-se e tenta elaborar uma resposta. De início, procura lembrar-se dos ensinamentos já professados pelos grandes ícones da literatura mundial. “O que responderia um Cervantes? Ou um Stendhal? Ou um Machado? Ou um Proust? Ou um Borges?”

Antes de entabular a resposta, um leitor profana tal encontro, pretensamente íntimo, a declarar com o verbo encarnado:

— Você, pelo menos, é pretensioso pra burro! Tão provinciano e já quer responder como um dos grandes, hein? Ô cabra presunçoso!

Olho para trás e percebo que não estávamos a sós, havia alguém a escutar a nossa conversa por detrás da porta da página.

— Um momento, amigo, que o papo aqui é particular e confidencial! — advirto-lhe, enquanto lhe mostro a porta-parágrafo de saída.

— Muuu…ito bonito, seu Clauder Arcanjo! Você, que sempre se dizia tão educado e tão fino, um sujeito tão aberto ao outro, vem agora com esta… como poderia dizer? com esta prova inequívoca de discriminação literária?!…

Por esta, confesso, o meu eu escritor não esperava.

Aturdido, ele tenta ganhar tempo, fechando os olhos e mergulhando no seu mar interior. Contudo, acreditem, lá a situação não está nem uma gota mais pacífica. Bastou aquela pequena pedra ser arremessada contra o cristal da superfície do seu oceano, oceano de pretensas certezas, para que emergisse, das suas profundezas, um exército de monstros letrados.

Antes de se ver arrasado por aqueles dragões, o meu eu escritor abriu, mais do que ligeiro, os olhos e concluiu: “Antes o conhecido sobre a terra do que o desconhecido sob as águas escuras do espírito”.

— Melhor sairmos deste dédalo literário e entrar na segunda questão! — defendeu, assustado, o meu eu leitor.

— E qual seria? — indagou o meu eu escritor.

— O escritor tem compromisso com o leitor, ou somente com ele próprio? Escreve-se para divertir, ou só se deve fabular apenas para purgar os nossos espectros e fantasmas? Escreve-se para…

— Chega, chega! Isto está me parecendo com uma grande enrolação, seu… seu… — gritou, a plenos pulmões, o meu leitor Raimundo Antonio.

— Olhe os bons modos, amigo Raimundo Antonio! Olhe o que nos ensinou o Pai do Céu! Se não por Deus, pelo menos em respeito à presença de Dona Dôra, sua diletíssima esposa.

— Deixe Deus e a minha mulher fora disso, seu escritor de uma figa! — vituperou Raimundo, com os olhos fundos de mágoa. — E vá logo cuidando de chamar por esse tal Fantasma de Licânia, senão… o fantasma aqui será você, fui bem claro?

— Lá vem ele! O Fantasma de Licânia. Corra, corra, Raimundo. E cuide de proteger a sua casa.

Estava eu a relatar no capítulo anterior: como as ferroadas ligavam-se a gritos e a urros diabólicos, a cidade toda despertou. Pouco mais, ela toda se armou para enfrentar, com paus, panelas e pedradas, o que julgava ser o Fantasma de Licânia.

— Minha Senhora Sant’Anna! — clamo eu, pobre escrevinhador de província, pela providência divina.

— Anjos e santos do Céu, guardai a alma do Companheiro Acácio, bem como a pena deste escrevinhador de província! Rezai por Acácio e por mim, alguns de vós.

Até a próxima semana. E venha mais calmo, ouviu, leitor Raimundo Antonio?! Esse Fantasma de Licânia é mais liso do que muçum.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]