O Fantasma de Licânia (Parte XIV) – Clauder Arcanjo

Para os maribondos e as abelhas

(porque este capítulo levou umas picadas)

 

— E o fantasma?

Não, caro leitor, esta indagação não é somente sua! Ela pulsa e (re)pulsa dentro do cocuruto da meia dúzia de leitores desta minha noveleta. Em especial, acredite, no juízo do nosso Companheiro Acácio. Diria até que, nem que apenas por mera solidariedade, no meu também.

— Parece que fui contratado para sofrer neste fim de mundo, meu Deus! — desabafou nosso Holmes de Licânia, lá com os seus botões. Ou seria com o seu cachimbo e o seu jaleco de detetive?

Pouco importa, a dúvida consumia as ideias do nosso investigador que, preso às interrogações, caía no desmundo da dúvida e, por consequência, na vala funda da inação.

Não diria que o ser-ou-não-ser shakespeariano invadira os músculos acacianos. Não, isso não. Até por que o Bardo Inglês não conceberia tamanha tragédia e desvalia.

Acácio recolheu-se, e meditou meditabundo na sua rede funda.

— Senhor Raul, vou dormir e não estou para ninguém — avisou, mal ultrapassou a soleira da porta de entrada da pensão.

A noite era fresca, e o céu pintado de estrelas. No entanto, leitor paciente, o nosso herói, ora direi, não estava para ouvir estrelas.

Com licença literária, e na pós-modernidade tudo é permitido, acompanharemos o sono e os sonhos do nosso caçador de fantasmas.

No entanto, Morfeu não veio. Também pudera!, a memória era um chafurdo só. Um tropel de lembranças bagunçava o miolo de Acácio. A rede parecia-lhe espinhenta; o lençol, inquieto, a mexer-se, seguidas vezes, dos pés à cabeça, e nada do corpo cair na paz sonífera. Como num filme em velocidade avançada, homens, tipos e cenas corriam num desatino que o deixava ofegante e aflito. Com pouco, coberto de suor, levantou-se, foi à quartinha e sorveu dois grandes goles da água serenada.

Nisto, nosso herói resolveu abrir a janela a fim de amansar o espírito. Quem sabe correndo o olhar pelo firmamento o sono não se achegaria?

Porém, antes de dar pela presença dos astros, Companheiro Acácio ouviu uma voz de timbre conhecido:

— Aquela maior é sua, meu benzinho. E se você me der outro beijo, desta vez de língua, eu lhe mostrarei outras constelações, sabia?

— E você agora é astrônomo, mestre Dandora?!

Era seu fiel assistente em amasso sideral com a jovem Zuleica, empregada recém-contratada da pensão.

Zuleica correu para a cozinha, e Dandora, com raiva, desabafou:

— E você, agora mesmo, foi o meu fantasma. Tá satisfeito, tá?

E Dandora saiu, de cenho franzido e ainda bem armado para as contendas do amor. Dizem que foi afogar as mágoas, com uma nova rapariga, no Caneco Amassado.

Aquele desabafo de seu leal assistente, leitor, foi a gota d’água. Acácio resolveu esquecer o sono, arrumou-se e se foi.

De início, vagou a esmo pelos becos e ruas licanienses. Em cada quarteirão, ao ser reconhecido, a colheita de fartas brincadeiras e piadas:

— Alguma pista do nosso belzebu?!

— Se precisar de um susto grande, seu Acácio, mostro-lhe o retrato da minha futura sogra!

— Que tal plantar mandioca em vez de correr atrás de falso fantasma? Mestre Dandora, seu assistente, sabe muito bem escolher os melhores terrenos na beira do rio!

Cabisbaixo, nosso Holmes recebeu aquela carga e nada devolveu. A cabeça, antes alvoroçada, entrou em compasso de endiabrado redemoinho. Os passos se aceleraram. Sem rumo, perdeu o siso e, quando deu por si, estava no Serrote da Rola, bem distante do Centro. Do alto, a vista da cidade guardada pelas estrelas e refrescada pelo aracati.

Não sabemos quando tempo lá ficou. Segundo alguns, horas. Se horas, foram daquelas que valeram por anos. Explico.

Como cabeça de investigador é ferramenta que não dá trégua, caro leitor, as alturas o levaram a mudar o aprumo da investigação. Catando sinais, revisitando pistas, excluindo falsos suspeitos, bem como esgaravatando outros supostos esconderijos, Acácio Holmes viu-se diante de um…

— Eureka! Eureka!…

Tal grito é batido e surrado, bem sei, porém pertinente e verdadeiro.

Empolgado, Companheiro Acácio pulou de alegria. E aí o coitado se deparou com um novo problema: uma caixa de marimbondos e um enxame de abelhas africanas.

Caro leitor, a cabeçorra de Acácio acertou em cheio no ninho dos maribondos e das abelhas. As ferroadas foram uma direta e cruel consequência. E, nunca antes na história daquele povo, um cabra desceu o Serrote da Rola numa rapidez tamanha.

Como as ferroadas ligavam-se a gritos e a urros diabólicos, a cidade toda despertou. Pouco mais, ela toda se armou para enfrentar, com paus, panelas e pedradas, o que julgava ser o Fantasma de Licânia.

— Minha Senhora Sant’Anna! — clamo eu, pobre escrevinhador de província, pela providência divina.

— Anjos e santos do Céu, guardai a alma do Companheiro Acácio! — rezam alguns de vós.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]