O Fantasma de Licânia (Parte XI) – Clauder Arcanjo

Para Sherlock Holmes

(In memoriam)

 

— Desde ontem que você anda muito calado, mestre Acácio! — ponderou o fiel ajudante Dandora.

Um suspiro longo como resposta.

— Algo a ver com a conversa com o prefeito? — inquiriu Dandora, de pronto.

Dois suspiros longos como resposta.

— Os seus assessores estão desde cedo na Praça, Acácio, e você aí a… Como eu poderia dizer? Sim, a suspirar.

Três suspiros, ainda mais longos, como única resposta.

Dandora sabia que aquela suspirança toda não iria dar em nada; então, resolveu agir.

O pior remédio é não fazer nada. A meninada está na Praça Padre Antônio Tomás, vou me juntar a eles. Tentarei ganhar tempo! — pensou Dandora, e sebo nas canelas magras.

Ao chegar à Praça do Poeta, mestre Dandora levou um susto. Explico. A legião dos SYLs já passava da centena. Como poderia aquilo? — pensou. — Os seguidores estavam crescendo mais do que a criação de coelhos da Conceição! — espantou-se.

— Por onde anda o nosso líder maior? — inquiriu-o, de pronto, o jovem Aristides.

— Está concentrado, Aristides. Concentrado, suspirando e escavando possibilidades, caros companheiros! Vocês nem podem imaginar como é difícil, apesar de muito digna, esta nossa vida de investigador fantasmal — comentou Dandora, com a voz cava.

Mestre Dandora examinou os presentes, perscrutando cada cantinho da Praça, e compreendeu de onde vinha a bendita multiplicação dos assessores da SYL. Gazumba, comerciante escolado, resolvera encomendar, na cidade de Sobral, uma centena de brasões e sobre eles colara a insígnia da Scotland Yard de Licânia (SYL). Pelo preço módico de cinco reais, o tal brasão era levado ao peito do novo eleito. Sem falar que a ritualística se dava pelas mãos do representante da lei!

Sim, caro leitor, Gazumba confabulara com o Cabo Jacinto Gamão; e este, vaidoso com o papel que lhe coubera de Grão-mestre Supremo da SYL, cumpria as nomeações com o rigor que um batismo assim bem o merecia.

Cabo Jacinto exigia que o novo pretendente a legionário se ajoelhasse, levando a mão esquerda sobre um livro de capa preta bem gasta que Gazumba conseguira na sacristia, e a direita sobre o peito:

— Repita comigo: “Ego Testor coram Deo et princeps noster, gloriam nostram legione ex principiis”.

Depois, com um toque pessoal, Jacinto Gamão dava duas cacetadas, uma no traseiro e outro no lombo do abençoado, arrematando:

— Bem-vindo ao nosso exército, seu cabra!

Apesar da dor, ninguém chorava, todos sabiam que aquilo fazia parte do rito de passagem. Assistiram, na tevê do seu Zequinha Coletor, a muitos filmes em que tais cenas assim aconteciam.

Quase meio-dia, sol a pino, e nada do Companheiro Acácio, o Sherlock Holmes das ribeiras de Licânia.

— Lealdade tem limite! — berrou um dos de cabeça mais quente.

Nesta hora, mestre Dandora subiu num dos bancos da praça e pediu um pouco de atenção:

— Se queremos fazer parte de uma missão, companheiros da SYL, temos que resistir e…

Nem foi preciso continuar. A meninada se voltou para a esquina da casa do seu Zequinha Coletor, defronte à praça. De lá, com passos cadenciados e de porte altaneiro, surgiu a figura do nosso Acácio Holmes.

Foi aclamado pelos presentes. Vestido a caráter (boina, jaleco quadriculado e até com o indefectível cachimbo), sua imperial presença levou todos a celebrarem, antecipadamente, o grande feito que se avizinhava.

— Te cuida, fantasma velho! A boca agora está quente para você. Te cuida…

Nosso Acácio não era inimigo dos rompantes. Serenidade e discrição eram suas marcas. Antes que a celebração tomasse ares de festa (e vocês bem sabem como tudo em Licânia resvala para o terreno da política, da pinga e da jogatina), ele elevou o braço direito, não sem antes fingir uma pitada no cachimbo sherloquiano, e todos mergulharam no silêncio expectante:

— Se queremos fazer parte de uma missão, legionários da SYL, haveremos de nos reunir em campo mais discreto. Pressinto, e não sou de falsas percepções, que estamos cercados de espiões e espiãs. Reparem bem em quem está ao seu lado, corram os olhos onde a vista alcançar. Quem nos garante que o Fantasma não mora ao lado? — disparou, sem mais delongas, o Companheiro Acácio.

Leitor amigo, a situação muda tão só com uma sentença. E se propalada com a entonação cabida e com o veneno certo, nem queira saber!, a coisa mergulha rápido em mar de procelas mil. Pois muito bem, mal exarou aquela desconfiança, Holmes de Licânia percebeu que havia carregado na dose. Como carregado na dose? Explico. Estou aqui para isso.

Cada um dos SYLs passou a desconfiar do companheiro ao lado. Os olhares adquiriram uma nesga de sangue, os corpos franziram-se como se em preparo de luta livre, as mãos crisparam-se, os pescoços enrugaram-se. Enfim, como se se preparassem para um combate insano. Aqueles que levaram a vista em direção às casas vizinhas da Praça do Poeta logo identificaram ali: postigos suspeitos, venezianas ardilosas, passantes estranhos, observadores de jeito e ato esquisitos.

Em segundos, a batalha travou-se em fúria de titãs. Palco, o chão sagrado da Praça Padre Antônio Tomás. De início, a mão de tapa começou solta, seguida de palavrões inumeráveis e impublicáveis. Fez-se um bolo de gladiadores, atracados no piso cimentado, a distribuírem safanões, pernadas, cotoveladas e chutes nos países baixos. Cabo Jacinto Gamão, Acácio e Dandora em vão quiseram interceder, chamando a todos para o terreno da paz e da concórdia. Contudo, o sangue fervente tornara-os cegos e surdos a quaisquer sensatas admoestações. Após levarem uma meia dúzia de tapas e cusparadas perdidas, o trio deu-se por vencido, recuando para a calçada do Zequinha Coletor.

Alguns quiseram avançar, deixando o campo de guerra da praça para ajustar contas com os “fantasmas” identificados nas residências. Nesta hora, Dona Maria Djanira percebeu o risco da guerra civil licaniense. Convocou depressa as mulheres de Licânia e, em pouco tempo, a praça estava cercada pelas mães dos contendores.

Nisto, a amplificadora anunciou:

— Todo legionário tem uma mãe. E olhem, brigões, quem está cercando a praça!

Não posso descrever a cena, apenas sugeri-la. Mauro e Zé Célio, ao verem a mãe deles, Dona Teresa, com a palmatória de pregos, afrouxaram o ódio que os movia. Gazumba, coitado, só em ver os olhos vermelhos de sua genitora, urinou-se todo. Os demais, desabaladamente, dispararam no rumo de casa, a gritarem:

— Foi sem querer, minha mãe! Sem querer.

Meia hora depois, a praça era novamente do Poeta. Restaram flores pisoteadas, bancos depredados, sinais de sangue em todo o cimentado do logradouro público.

Ao canto, ainda espantados, os três líderes dos SYLs: Acácio, Jacinto e Dandora.

Dona Maria Djanira se aproxima do trio e admoesta-o:

— O Fantasma aqui sou eu. Vão trabalhar, seus bestas! Por onde andam as mães de vocês, que não lhes dão uma boa sova?

 

***

 

O capítulo de hoje se encerra aqui.

Por quê? Ora por quê! Minha mãe é a Maria Djanira, caro leitor, e não pretendo ser repreendido por ela, não.

— Sua bênção, mãe!

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]