O fantasma de Licânia (Parte VI) – Clauder Arcanjo

Para Lídia Jorge

A chegada de um inspetor a uma novela deveria ser um fato de monta, narrado com toda a pompa, foguetório e circunstância. Mas, compreenda, caro leitor, estamos em Licânia. Aqui, tudo se sabe de antemão, tudo se comenta nas calçadas, nada escapa aos ouvidos (nem muito menos às línguas) das astutas damas licanienses. — Dizem que é um novo Sherlock Holmes! — No último crime do Beco da Galinha Morta, na Salinésia, enquanto todos já davam o caso como insolúvel, ele foi chamado: cheirou, catou, mexeu, ouviu, mediu e… desvendou.

Tudo obra do mordomo. “Elementar! Elementar!”; propagou aos quatro ventos. — Precisava, sim, de uma intervenção. A coisa já dura mais de vinte dias, e ninguém sabe nada acerca deste… deste… Que não me ouçam: “Deste fantasminha de araque!” — Dona Therezinha, Dona Therezinha!?… Se o seu esposo souber do que você anda dizendo?! Humm!…, nem sei.

Ivan Perobino foi um dos que mais defendeu a vinda do tal inspetor! — E eu sou mulher que me incomode com o que pensa o meu marido?! Rita Gertrudes, do alto da sua sapiência de primeira a denunciar a existência do Fantasma de Licânia, interrompeu a prosa: — Se o Cabo Jacinto Gamão, nossa autoridade policial constituída, só sabe dar surra em bêbado, o que se há de fazer?

Vamos dar um crédito ao investigador que vem das terras d’além rio. E a conversa mergulhou na modorra de sempre, e nos assuntos de costume: a nova mancebia do Zé Alves, a pretensão do Paulo Bodô 2 em ser boticário, os namoros mais apimentados no intervalo das festas no Alcione Clube. Com pouco, o relógio da Matriz anunciou as dez badaladas da noite, e todas se despediram, retornando, contritas e puras, para a paz das suas casas. Nisto, na sede da prefeitura, uma reunião varava a noite.

O prefeito convocara seu secretariado para explicar o porquê da sua intervenção no caso: — Meus caros assessores, a situação caminhava a passos largos para que eu decretasse o estado de calamidade pública. Explico. Os negócios noturnos nos botecos caíram a níveis nunca antes vistos: seu Zezé, por exemplo, me queixou que as vendas dos seus sucos de peroba e de murici caíram mais da metade; Gazumba não comercializava nem a metade das tripas assadas que mercadejava antes da crise do Fantasma.

E na Farmácia do Galvino nem aspirina mais saía. Como podem ver, claro, isso tudo jogou a nossa arrecadação para o fundo do poço. Até os negócios da dita economia informal, aqueles que não emitem nota fiscal, não é Parnir?, tiveram uma redução significativa. — As putas estão todas em férias coletivas, senhor prefeito! — emendou Parnir, secretário de transportes, fazendo corar quase todo o constrangido secretariado. Em especial, Dona Carminha, chefe de gabinete e pia Filha de Maria. — Sem detalhes, Parnir. Não precisamos de muitos detalhes.

Pois bem, pois muito bem. Para não usar da força, recorri à inteligência. Deu-se, então, a contratação, por notório saber, do valoroso investigador. Dona Carminha, por favor, leia o currículo do homem. Fez-se silêncio no gabinete. Dona Carminha abriu uma pasta escura, sobre ela a expressão: TOP SECRET. — Nome completo: desconhecido. Nome fantasia: Companheiro Acácio. Profissão formal: professor aposentado. Naturalidade: um mistério. Idade presumida: 54 anos.

Tez morena clara, cabelos pretos e ralos, bigode espesso, estatura mediana. Vício: a leitura e os mistérios. Não se sabe se foi casado, nem se teve filhos. Reservado e exigente, 3 Companheiro Acácio desvenda casos fazendo uso de uma atilada inteligência e de um senso de oportunismo ímpar. Portfólio: trinta casos de traições matrimoniais reveladas; sete casos de falsa paternidade e setenta e sete casos de assassinatos desvendados.

Sem mencionar os inúmeros registros de assistência à Igreja, ao Estado e ao Poder Judiciário. Recebeu a Comenda do Santo Ofício de Investigador Emérito da Confraria do Bode Azul. Deu-se um intervalo de espera para a intervenção do senhor Prefeito. Como ele não usou da palavra, o Dizim, secretário extraordinário das causas especiais, resolveu comentar: — Será que este cara conseguiria descobrir o paradeiro do filho de Maria Abógada? Sim, a coitada anda feito louca em busca do seu único filho, Ernesto Julio Borges Casares. Lembram?

Ele fugiu com aquele velho argentino, paixão da sua vida, deixando-a só, a vagar com “la luna” pelos becos e ruas da nossa pequena província. A gritar, naquele sotaque que aprendera nas noites de el amor, tango y sangre, com o viejo Luis César Mario Tizón. Sim, todos se recordavam muito bem do drama de Maria Abógada. Passados alguns instantes, o prefeito interveio: — Não podemos mudar o objeto da licitação direta. Lembrem-se de que o Ministério Público está doido para me pegar no contrapé. Melhor, para nos pegar no contrapé. Mas, esta mão aqui — falou, em tom gutural, levantando a mão direita — nunca pegou em dinheiro público. Parnir e Dizim, mais chegados à galhofa, esboçaram um naco de riso, pois sabiam-no canhoto. — Muito bem, explicado todo o caso.

Quero que o senhor Dizim, nosso secretário extraordinário das causas especiais, receba o nosso inspetor, o notável Companheiro Acácio, com banda de música e foguetório na tarde-noite de amanhã. É uma forma de calarmos a oposição, que já se articula, por debaixo dos panos, com os partidos 4 nanicos, para pedirem na Câmara a minha cassação por “improbidade frente às forças do Além”. Quero tanta ciranda amanhã à noite, minha gente, que tudo que é cachorro nesta cidade vai passar a madrugada na mataria.

Fui bem claro? — E teremos forró, senhor prefeito? — inquiriu o Charles, secretário da educação, das festas e dos esportes. — Claro, senhor secretário. E lá podemos receber um homem assim sem uma noite toda de sanfona, triângulo e zabumba!? — Queima raparigal! Já estou gostando desse inspetorzinho! — admitiu Parnir, na saída. A notícia se espalhou, e a cidade dormiu na certeza de que tudo, dali em diante, se resolveria. *** À meia-noite, Licânia foi desperta por um grito aterrador.

O padre Araquento fez o nome do pai, Ivan Perobino Abuelo meteu-se debaixo da cama, apesar das perorações da esposa, Dona Therezinha Ferreira Valladares de Jesus: “Deixe de ser frouxo, homão!?”. Na manhã seguinte, a jumenta do Aparício foi dada como desaparecida: — Foi o Fantasma. Foi o desgramado do Fantasma de Licânia! Minha jumentinha, pobre Januária! — desconsolado, Aparício derramava-se em lágrimas por sua leal companheira.

Enquanto isto, na Amplificadora, o alcaide anunciava: “Convido a toda a sociedade licaniense a se fazer presente, logo mais, às 17 horas, no adro da Matriz, para receber o intimorato investigador Sr. Acácio Holmes. Fantasma de Licânia, seus dias estão contados!” Nisso, o som falhou, e uma risada gutural invadiu (e arrepiou) os ares temerosos das ribeiras do Acaraú. 5

Não perca o próximo capítulo. Mistérios e revelações o aguardam, caro leitor.

Clauder Arcanjo [email protected]