O Fantasma de Licânia (Parte IX) – Clauder Arcanjo

Para João Almino

 

— Precisamos nos preparar melhor, meu caro Dandora! — comentou Companheiro Acácio.

— Eu quero é pedir logo demissão deste meu cargo, seu Acácio! Não dou para essas tais coisas de mistério e suspense. Desde pequeno que eu nunca aguentei assistir a um filme de vampiro na televisão ABC do seu Zequinha Coletor. É de família, não sabe? Meu irmão Crispim, coitado, não pode ouvir sequer um pio de coruja que se mija to-di-nho! — atalhou mestre Dandora.

Companheiro Acácio colocou as duas mãos para trás, fechou o semblante e pôs-se a caminhar em círculo. O cenho franzido demonstrava a gravidade de seus pensamentos elucubrativos. Com pouco mais de meia hora, disparou:

— Temos que ir a busca de novas pistas e de novos aliados. O Fantasma tenta nos assustar, pois quem com ferro fere, Dandora, com ferro será ferido. Siga-me!

Pronunciou tais palavras e foi arrastando seu fiel assistente para a Praça da Matriz. Chegando lá, nosso investigador subiu no banco da praça e fez uma convocação pública à molecada da província; esta já se preparava para mais um festival de presepada na longa noite de Licânia. Era a Hora do Ângelus.

— Meus caros rapazolas de Licânia. Sou o Companheiro Acácio, o investigador contratado para desvendar o mistério que atazana o juízo dos homens e mulheres desta cidade. Refiro-me ao Fantasma de Licânia.

Um dos meninotes da Rua de Trás já preparava seu estilingue para acertar uma pedrada na testa daquele homem falador, quando foi contido, tendo sua baladeira detida pelo Cabo Jacinto Gamão:

— Fique quieto, senão o meu cacete de jucá…

Não precisou completar, toda a meninada sabia da “força argumentativa e demonstrativa” daquele amansador de gente.

— Para que a minha missão seja coberta de êxito, caros amigos, eu precisarei de uma legião de seguidores. E estou aqui com a missão precípua de nomeá-los meus assessores investigativos adjuntos! — Acácio foi dizendo isto e sacando um brasão, com a insígnia da Scotland Yard de Licânia (SYL), do bolso de sua jaqueta.

A insígnia brilhou na mão direita do nosso Holmes das ribeiras de Licânia.

— Quem me seguir, fique logo sabendo, portará tal identificação no peito esquerdo e será reconhecido, e respeitado, como valoroso homem da lei.

— Medalha de ouro!? Isto sempre foi o meu fraco! — disparou Gatinho, uma espécie de líder da turma do outro lado do rio.

O alvoroço tomou conta da praça, a criançada num azáfama só.

— Quem se dispuser a tal missão, ou seja, ser meu assessor investigativo adjunto, terá, antes, que prestar juramento aos princípios da SYL.

Aristides, o mais alto e corpulento dentre os garotos presentes, achou esquisito esse tal de juramento, e inquiriu:

— E você por acaso é padre, para se prestar juramento?

Nosso Acácio Holmes nada respondeu, apenas levantou mais ainda a mão direita, fazendo com que a medalha de investigador adjunto ficasse à vista de todos. Sabia do fraco da criançada por uma insígnia, fora criança e entendia muito bem dessas questões.

Foi o suficiente. Mais de uma dúzia deles fizeram fila à frente do banco onde Acácio proferia seu chamado à lei e, uníssonos, declararam:

— Estamos prontos para a nossa missão!

A cada um deles, Companheiro Acácio exigia que jurasse, ajoelhado, com a mão esquerda sobre um livro de capa preta bem gasta e a direita sobre o peito:

— Repita comigo: “Ego Testor coram Deo et princeps noster, gloriam nostram legione ex principiis”.

O latim, apesar de ninguém entender bulhufas do que estava sendo jurado, revestia a augusta cerimônia de um quê de tradição imperial.

Foram quase duas horas naquela sessão de elevação da criançada à condição de membros da SYC. Ao fim e ao cabo, a Scotland Yard de Licânia recebia a adesão de mais dezoito novos membros.

Em seguida, em ordem unida, Acácio, Dandora e seus dezoito assistentes rumaram em direção à delegacia. Chegando lá, refizeram o juramento perante a autoridade policial constituída. Acácio bem sabia que não seria oportuno, muito menos prudente, investigar sem as bênçãos do Cabo Jacinto Gamão. Este foi logo designado Grão-mestre Supremo da SYC. Como não havia mais insígnias, Companheiro Acácio apôs-lhe uma coroa de louros. Na verdade, na verdade, Dandora preparara, às pressas e sob a orientação acaciana, uma coroa feita com as folhas dos benjamins de Licânia. Vaidoso, Cabo Jacinto fez questão de abençoar a todos. Como havia assistido a um filme sobre os cavaleiros medievais, Jacinto Gamão achou por bem imitar uma de suas cerimônias. E assim o fez. Como não havia espada, o cacete de jucá fez-lhe o papel. Levou, então, o cacete sobre a cabeça de cada um dos meninotes, a proferir, com voz altissonante:

— Estejam prontos para matar ou morrer! Alea jacta est.

Como não dominava a língua de Virgílio, restou-lhe fechar suas palavras com a única expressão que aprendera lendo as Seleções.

Esta coisa de ritualística obrou milagres em solo licaniense. A cidade, nas últimas horas, não havia sido assacada por nenhuma traquinagem daquela, outrora, horda de meninos travessos. Ou seja, nenhuma vidraça havia sido quebrada; nenhum cachorro cruzara, desembestado, as ruas de Licânia com uma bexiga amarrada no rabo; nenhum gato disparara por entre as calçadas com o fundilho a queimar com um chumaço de querosene; nem sequer os bêbados foram importunados em seus sonos etílicos nas calçadas do Mercado Público. Enfim, a paz reinara como nunca antes.

Até que… um grito pavoroso soou pela amplificadora.

— É o Fantasma! Alea jacta est. Legionários da SYC, avante!

Quando quis dividir os presentes em grupos de ataque e investigação, Companheiro Acácio, nosso Holmes de Licânia, teve que se abaixar. Seus valorosos dezoito assistentes, acompanhados por mestre Dandora e o Grão-mestre Cabo Jacinto Gamão, enfiaram-se, num piscar de olhos, embaixo da escrivaninha da delegacia.

Bom, o restante da história ficará para o próximo domingo.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]