O Bem-Amado’ mostra que o Brasil de Bolsonaro é o mesmo dos coronéis

Brincadeira que compara prefeito da novela de Dias Gomes ao atual presidente fica séria com reestreia da novela no streaming

​As semelhanças entre Jair Bolsonaro e o prefeito corrupto Odorico Paraguaçu, personagem de “O Bem-Amado”, alavancam um resgate da obra de Dias Gomes, autor desse e de outros clássicos, como “O Pagador de Promessas” e “Roque Santeiro”.

A genialidade do dramaturgo, que foi um célebre membro do Partido Comunista, se evidencia graças ao capitão que adora a ditadura militar e detesta a cultura brasileira.

A reestreia no Globoplay da novela “O Bem-Amado”, a primeira em cores, de 1973, mostra que ficou séria a brincadeira de comparar em memes os políticos, o real e o fictício.

Foi, aliás, uma história fúnebre real que inspirou o dramaturgo a escrever a peça de teatro que daria origem à telenovela e ao seriado exibido entre 1980 e 1984.

Dias Gomes teve a ideia em 1961, ao saber de um fato curioso do início do século. Em 1906, Guarapari, no litoral capixaba, teve seu primeiro cemitério construído com pompa e dinheiro, mas a obra não podia ser inaugurada porque ninguém morria na cidade. As críticas ao gasto inútil só aumentavam a cada dia sem defunto, o que durou dez anos, até que, em 1916, houve a inauguração, com um morto de um município vizinho.

A cerimônia até parece cena da novela. Um vereador fez um efusivo discurso para exaltar a cidade “da saúde e das maravilhas”, lugar onde “nunca ninguém morre nem entristece”. Na plateia, alguém o chamou de “negro burro”, ao que o político respondeu que “a cor da epiderme não inflói nem contribói”.

A ofensa, disse, “é a prova das razões por que esta merda de cidade não vai adiante”. Desceu do palco se recusando a falar para “ignorantes e analfabetos” e deu uma banana para o público.

Odorico, interpretado na TV por Paulo Gracindo, é inflamado como esse político de Guarapari e tem rompantes à Bolsonaro, mas, diferentemente do presidente, valoriza a erudição, fala bonito e cita nomes da cultura e da política.

Logo no primeiro capítulo, cita Rui Barbosa para dizer que o bom governante “é aquele que governa com um pé fincado na terra e o olho fincado no futuro, ou vice-versa”.

O linguajar do prefeito, que rodopia por palavras difíceis até “botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes”, foi inspirado, segundo Dias Gomes, no “hiperbólico estilo oratório” de Carlos Lacerda, um dos mais cultos representantes da direita brasileira.

De certa forma, pode ser ofensiva para Odorico, e injusta com a memória de Lacerda, a comparação entre o prefeito e Bolsonaro. Por outro lado, o protagonista de “O Bem-Amado” é a cara do atual presidente ao representar o político autoritário das pequenas cidades brasileiras, os chamados coronéis.

São figuras inescrupulosas, por vezes carismáticas e até simpáticas, que se perpetuam no poder por meio do paternalismo e assumem, diante de um povo miserável, o papel de salvadores da pátria. “Se há vaga de herói nesta terra, essa vaga é minha”, diz Odorico no trecho da novela que viralizou na internet.

Dias Gomes cria um jogo entre esse universo regional e os desmandos federais, fazendo de Sucupira um microcosmo do Brasil. O paralelo se tornou evidente na ditadura militar e faz com que a obra soe atual diante de um governo antidemocrático e personalista como o de Bolsonaro.

Até que os ditadores perceberam que Sucupira não era tão distante de Brasília. A censura foi pesada nos 44 capítulos finais, cortando críticas a instituições e à autoridade.

A série “O Bem-Amado”, continuação da novela, reforçou os paralelos entre Sucupira e a política nacional, o que a levou ao posto de programa de TV mais censurado em seu período de exibição. Numa das passagens proibidas, Odorico explica a “democratura”: “É um regime que conjumina as merecendências da democracia com os talqualmentes da ditadura. Na democracia, o povo escolhe a gente, os governantes. Na democratura, a gente escolhe o povo que vota na gente”.

Belo termo para a ditadura que tentava se disfarçar de democracia naquela época. Só naquela época, talquei?

Laura Mattos
Laura Mattos

Folha Ilustrada

Deixe um comentário